Progresso e Apocalipse

A narrativa do progresso tem sido central na nossa cultura nos últimos 300 anos. Induz-nos a acreditar que o tempo é uma seta que avança para a frente, fazendo-se acompanhar de cada vez mais e melhor em todas as áreas: maior progresso tecnológico, científico, económico, moral, etc. Tende a ser acompanhada por modelos económicos que insistem no crescimento independentemente da sustentabilidade e numa fé cega na tecnologia.

Esta narrativa lida mal com a noção de limite. Por exemplo, que vivemos num planeta com recursos finitos e limitados, pelo que o crescimento não pode ser ilimitado. Talvez por isso, dentro dos temas ambientais, haja temas mais populares que outros. Por exemplo, o das alterações climáticas é mais popular que o tema do fim das reservas de petróleo. Este apresenta-se como narrativa de limite: energias fósseis que demoraram milhões de anos a constituir-se, poderão esgotar-se dentro de alguns anos. O outro, esconde ainda uma narrativa de poder: a humanidade tem tanto poder tecnológico que é capaz de alterar o equilíbrio da natureza! Mas o gênio humano também será capaz de encontrar soluções quando a situação o exigir.

O lado reverso da narrativa do Progresso é a narrativa do Apocalipse, segundo a qual a humanidade está em direção a um beco sem saída trágico. Tende a imaginar que algures no passado as pessoas teriam vivido em harmonia com o mundo, mas que essa idade de ouro terminou e, desde então, as coisas encaminham-se para o desastre. A catástrofe é inevitável e o futuro será distópico. As comodidades básicas que temos por adquiridas desaparecerão e hordas descontroladas de pessoas sobreviverão vasculhando o que sobra pelo território.

A atração por uma ou outra das narrativas não se prende exclusivamente com uma avaliação racional dos factos, mas também com a vida emocional.

Se a ansiedade é crescente, aproximando-se do insuportável, estratégias defensivas de negação da ansiedade, de tipo maníaco, podem ser activadas. A narrativa do progresso presta-se a ser convocada ao serviço desta estratégia, pois vai ao encontro do desejo de nos sentirmos grandes e poderosos, uma espécie de “reis do castelo”.

Quando a depressividade predomina, a narrativa do apocalipse dá forma a fantasias do género “tarde demais para reparar os danos”. Esta fantasia de “mundo estragado” pode servir de escudo ao reconhecimento da depressão: é mais fácil achar o mundo deprimente, e sentir-se unido aos outros na partilha de um mundo condenado, do que reconhecer-se isolado na sua depressão. Além de que permite evacuar projectivamente a ansiedade. O discurso moralista e catastrófico tende a depositar a culpa no outro, ao mesmo tempo que se coloca numa posição de superioridade moral e, aparentemente, imaculada. Proporciona a satisfação de poder dizer “eu bem que tinha razão” quando as coisas correm mal e de imaginar o castigo de todos, exceptuando talvez o próprio.

Ambas as narrativas podem contribuir para a apatia e indiferença perante uma crise. A primeira seduzindo para uma fé cega e ingénua de que tudo irá correr bem. A segunda instigando um estado de desistência, que pode ser acompanhado pelo desejo de estragar mais, numa atitude “perdido por um, perdido por mil”. Ao menos garantimos que nada temos a perder e que outros não gozarão quando já cá não estivermos.

Searles (1972) foi o primeiro psicanalista a vislumbrar que por trás da aparente apatia e indiferença aos sinais de uma eventual crise ecológica podem estar motivações inconscientes, de medo, inveja ou ódio daqueles que consideramos como rivais favoritos. Dinâmica que se pode encontrar também na relação entre as gerações mais velhas e mais novas. Para Searles é insuficientemente reconhecido que, no conflito edipiano, os mais jovens são muitas vezes os vitoriosos no que respeita à luta pela atenção e investimento emocional. Isto poderá contribuir para a apatia dos mais velhos perante condições que ameaçam a sobrevivência dos mais novos. Uma espécie de vingança pelas condições de privação que viveram e de satisfação vicariante por saber que a ameaça atinge igualmente aqueles que são considerados como preferidos.

A atual crise pandémica, convoca fantasmas de luta entre bem e mal, luz e trevas, ciência contra vírus, como se jogasse o triunfo do progresso ou do apocalipse. Ela confronta-nos com os nossos limites. Põe à prova a capacidade de ultrapassar a apatia e a indiferença e, nas medidas e prioridades, testa o potencial de sadismo contra os que consideramos rivais favoritos, seja mais velhos, mais novos ou outros. Saberemos estar à altura destes desafios?

Bibliografia:

Searles, H.F. (1972). Unconscious Processes in Relation to the Environmental Crisis. Psychoanalytic Review, 159(3): 361-374

Imagem: fotografia de Ryoji Iwata, published by Unsplash.

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