Luz e sombra em psicanálise

Nos seminários em Los Angeles, de 1967, Bion cita uma carta de Freud dirigida a Lou Andreas-Salomé, de 25 de Maio de 1916. Ali, Freud escreveu que ficava sempre muito impressionado com as observações que ela fazia sobre os seus trabalhos. Era como se ela procurasse acrescentar ao que lhes faltava, colocando por cima uma superestrutura.

Em jeito de justificação do que poderia parecer uma insuficiência da sua parte, Freud diz: “Eu ceguei-me artificialmente para concentrar toda a luz numa passagem escura… Os meu olhos estão habituados ao escuro e não suportam a luz forte ou a grande visão…”

Um pouco como, quando se quer ver algo que tem um brilho fraco, quanto mais as luzes se apagam, melhor.

A imagem do cegar-se para ver melhor tem ressonâncias profundas. Sabemos que Freud sempre foi avesso às grandes visões de conjunto especulativas que tendia a associar mais ao domínio da filosofia do que da ciência, onde colocava a psicanálise.

Em ciência a teoria subordina-se à observação. A abundância de observações aumenta a probabilidade de termos boas teorias. Já o contrário, excesso de teoria e poucas observações aumentam a probabilidade de erro. Daí que a expressão “superestrutura” denuncie a ambivalência de Freud face ao que se “acrescenta”, que aos seus olhos arrisca distorcer e embelezar. Uma superestrutura teórica que se impõe sobre o observado, expõe-se a transformar-se em ideologia.

É significativo que Bion, nesse seminário, refira que em psicanálise talvez haja demasiadas teorias. Adverte contra a tendência para, quando algo na clínica nos deixa perplexos, procurar resposta na busca de mais teoria, em vez de tentar melhorar a capacidade de observação. Quando se é capaz de observar, a interpretação a seu tempo virá.

Ao dizer que talvez haja teorias demais, Bion coloca-se claramente do lado daqueles que defendem que a capacidade de observação clínica é mais importante que a mestria teórica.

É que em psicanálise, diz ele, é difícil ter a certeza que se compreendeu a teoria tal como o seu fundador a concebeu. E é difícil estar seguro de que sabemos como usá-la, não vá acontecer que na sua utilização a alteremos e distorçamos.

A psicanálise inaugurou um novo modo de observar que procura trazer para o campo de atenção aquilo que tende a ficar de fora, o que é apenas acessível a uma espécie de visão periférica ou indirecta. Trata-se de uma indagação que busca observar o que é furtivo à claridade, aqueles pensamentos, sentimentos e impressões que pululam sem que o próprio se dê conta, mas que exercem influência.

Daí que a imagem de Freud seja tão eloquente: a psicanálise exige o posicionar-se como quem se cega para ver melhor. Mas “ver” em psicanálise não é apenas um processo consciente. Inclui o acumular inconsciente, subliminar, de muitas experiências que poderão desembocar numa intuição. Por isso, Bion adverte contra as interpretações prematuras. Aconselha uma atitude de espera. Se se escutar o suficiente, ao fim de algum tempo algo emergirá, começar-se-á a notar um padrão, gerando eventualmente uma interpretação.

A interpretação só será convincente e sentida como verdadeira se o analista se permitir passar por um processo em que pode sentir-se perseguido e deprimido pela sua ignorância, antes de chegar à segurança da interpretação. Necessita tolerar estados de confusão em que não percebe nada, até chegar à intuição que clarifica a situação. Se não suportar esses estados, há o risco de curto circuito do processo, recorrendo a teorias e interpretações emprestadas de livros ou supervisores. Normalmente estas não acrescentam nada. Só servem para apaziguar angústias perante o desconhecido e visam mais provar que se sabe do que compreender.

Podemos vislumbrar que para Freud e Bion a escuta e a observação têm primazia sobre as teorias. Estas são pertinentes apenas se nos ajudam a ver melhor aquilo que está na obscuridade Não chega repetir conceitos e teorias. Estes têm que ser redescobertos e atualizados de novo aqui e agora.

É possível esconder a ignorância numa superestrutura teórica densa. Inversamente, alguém pode usar uma linguagem simples mas mostrar que fala do que sabe. Percebe-se que fala a partir da sua experiência e que refletiu sobre ela.

Assim, em psicanálise, dizer de alguém que tenta pensar sobre a sua experiência, que é “muito” ou “pouco teórico”, pode ser equívoco. O seu significado dependerá do lugar a partir do qual se fala: de um lugar que valoriza a luz forte da superestrutura teórica ou de um lugar que preza o adentrar na obscuridade da experiência. Quem opta pelo segundo, não hesita em aceitar a insuficiência de luz em troca da oportunidade de entrar numa passagem escura.

Bibliografia:

Aguayo, J.; Malin, B. D. (2013). Wilfred Bion: Los Angeles Seminars and Supervision. Karnac

Imagem: Eduardo Casajus Gorostiaga (retirado da unsplash)

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