“I was walking down the road with two friends when the sun set; suddenly, the sky turned as red as blood. I stopped and leaned against the fence, feeling unspeakably tired. Tongues of fire and blood stretched over the bluish black fjord. My friends went on walking, while I lagged behind, shivering with fear. Then I heard the enormous, infinite scream of nature”

– Edvard Munch, O grito

Nos últimos meses perdi três amigos, a minha querida cadela e dois queridos humanos. Como noutros momentos, estou diante do que fazer com o que (me) aconteceu. Conheço o lugar, mas é sempre a primeira vez. Como um bicho de conta que se encolhe e se alonga, em movimentos vagarosos, continuo a responder à realidade que diariamente me chama, mas peço-lhe que tolere com paciência o momento do recolhimento para que não tenha de sair deste lugar tão depressa. Sei, lá no fundo, que esse momento virá, mas por enquanto quero adiá-lo. O perpétuo movimento do que gira e avança traz-me tormenta e irritação. Como pode o mundo esquecer tão depressa? Estou num lugar do meio. Preciso de puxar o horizonte para trás até ao exacto momento onde o deixámos ontem, lembrar o rosto, as expressões, os traços, os gestos, as palavras, as coisas pequenas, para ficar mais um pouco com quem partiu. Vivo na carne a travessia do exterior para o interior. Sinto-me a edificar a casa interna onde o outro permanecerá comigo em mim e quero dedicar-lhe todo o vagar e atenção. Receio que se percam detalhes pelo caminho. Tenho medo de esquecer. Quero lembrar. Ouço-me a dizer os seus nomes vezes sem conta como que a trazê-los de novo à vida. Preciso sentir o meu corpo em contacto e a ausência a trazer lágrimas. Não quero que me ofereçam lenços nem palavras, nem que me consolem. Quero ficar perto do grito e do momento do desabamento. Quero ser habitada por fantasmas e peço à noite e ao sonho que os tragam. São fantasmas bons. Quero dar-lhes morada, registá-los, escrevê-los.

Já estive com outros em momentos semelhantes e únicos, entre amigos, na clínica. Quando acompanhar era sobretudo não adiantar o relógio, escutar e estar presente. Tive confiança que o caminho se faria, quando a ligação vivida foi de qualidade. Foi mais difícil quando nada restava senão o vazio e a pena de não ter nada para guardar, uma tristeza, um luto do que não aconteceu. A perda exige ao psiquismo um imenso esforço para transformar em presença uma ausência. Em Luto e Melancolia Freud descreve o luto como um trabalho que o ego tem que realizar para se adaptar à perda do objecto amado, diante da percepção propiciada pelo teste de realidade de que esse objecto foi perdido. O luto é a travessia, uma etapa que leva tempo, um percurso diferente para cada um, pois cada um mantém laços diferentes com aquele que partiu. A ligação com o objecto interno permanece e é ressignificada. O trabalho de luto é esse trabalho de ressignificação que nos trará de volta à vida, acompanhados do interior pelos bons fantasmas. Percebo-o de cada vez que sinto alguma doçura desconhecida ao olhar o nascer-do-sol na cidade habitada.

Aguarela: mourning da autoria de Maria Teresa Sá

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