A utilização de Psicadélicos em Saúde Mental parece estar a tornar-se viral. Poderá a Psicanálise, pela sua forma única de olhar a mente e o sujeito, acrescentar um novo sentido e um saber mais aprofundado?
Nos últimos anos, devido a uma multiplicidade de fatores (estilo de vida exigente numa sociedade competitiva, alteração das formas de relação e comunicação associadas ao mundo digital, crises económicas mundiais, Pandemia, guerras…) temos assistido a uma saúde mental em crise, com um crescimento exponencial do recurso a antidepressivos e ansiolíticos.
A necessidade de recorrer a formas mais eficazes de tratamento tem conduzido recentemente a uma elevada investigação e reutilização da medicina psicadélica em Psiquiatria, a qual se tem mostrado surpreendente no tratamento de vários diagnósticos psiquiátricos como a depressão resistente (estado depressivo que não melhora com medicação antidepressiva), Estados ansiosos, Distúrbios Obsessivo-compulsivos, Adições, Stress pós-traumático, Ideação suicida…
Os psicadélicos são substâncias psicoativas (e.g Psilocibina, LSD, MDMA, Ketamina) que, ao contrário dos psicotrópicos – que têm uma função calmante no sistema nervoso produzindo uma diminuição da sintomatologia -, estimulam o mesmo, em determinados recetores (aumento da conetividade neuronal), criando, do ponto de vista neurológico, uma neuro plasticidade e reconfiguração de ligações sinápticas e, do ponto de vista psíquico, uma alteração da consciência. O sujeito entra assim, temporariamente, numa espécie de sonho acordado, acompanhado por uma dissolução do Ego e expansão da consciência, o que levou a que também os psicanalistas detivessem o seu olhar clínico e teórico sobre esta alteração do estado mental e seus efeitos terapêuticos, e pensassem a experiência Psicadélica como uma possibilidade de promover uma viagem controlada e acompanhada ao inconsciente, abrindo um caminho para uma reconfiguração do Self. O “sonho psicadélico” constituiria assim um “caminho direto ao inconsciente”, conduzindo o sujeito numa viagem interior a conteúdos reprimidos ou dissociados, permitindo-lhe revisitar situações traumáticas passadas e atribuir-lhes uma outra interpretação, reelaborando a organização defensiva patológica criada nos primeiros anos de vida e responsável pelo sofrimento atual (Fischman, L. 2019; Guss, J. 2022; Vaid, G. 2022)
Efetivamente, apesar da investigação empírica atual mostrar resultados positivos em grandes grupos de indivíduos com diversa sintomatologia psiquiátrica, tem-se constatado que, para que o efeito dos psicadélicos perdure, é necessária uma integração da experiência vivenciada em sessões posteriores de Psicoterapia – a “Psicoterapia Assistida por Psicadélicos”, que visa uma integração da experiência subjetiva vivida pelo sujeito durante a utilização dos Psicadélicos na sua história de vida, na sua personalidade, no seu sofrimento atual.
De entre os vários tipos de Psicoterapia utlizados, a Psicanálise que, através da associação livre, dos sonhos, da transferência, utiliza o material inconsciente do sujeito como ferramenta para a transformação psíquica e sintomatológica, será talvez aquela que melhor o pode ajudar a integrar a sua experiência psicadélica. Por outro lado, a própria Psicanálise poderá utilizar a compreensão da experiência psicadélica como forma de aprofundar o conhecimento da mente humana (Guss, 2022).
As substâncias ativas nos psicadélicos têm uma longa história antropológica. Desde há muito tempo utilizados nas culturas indígenas, nos rituais xamânicos, estas substâncias foram parte central nos rituais de atribuição de significado e construção comunitária em culturas indígenas, onde o sofrimento é percebido como uma conexão desequilibrada entre o mundo espiritual e a natureza. Ingeridas pelo xamã – guia de conhecimento e treinado através de práticas rituais ao longo de gerações – estas experiências são compreendidas como oferecendo um insight especial sobre a causa das doenças, distúrbios com a natureza, possessão de espíritos ou perda da alma, sendo dirigidas à cura de doenças físicas, mentais e espirituais, e servindo ambos o indivíduo e a comunidade.
Na clínica Psicanalítica existe também uma procura de significado, que é co-criado através de um espaço analítico partilhado, onde conteúdos anteriormente dissociados se tornam acessíveis para uma experiência emocional e autorreflexão. Ao contrário dos xamãs, os psicanalistas não ingerem medicamentos para facilitar o acesso ao mundo invisível, mas através da sua formação, internalizam um método para alterar as perceções e a consciência, juntamente com os pacientes, de modo a vislumbrar processos inconscientes.
É interessante olhar para a História da Psicanálise e constatar que na décade de 50, altura em que a Psicanálise era uma das psicoterapias mais vigentes no mundo ocidental, e os avanços farmacológicos permitiram sintetizar algumas destas substâncias como o LSD, este começou a ser largamente utilizado por psicanalistas na sua prática clínica com o objetivo de “desbloquear material inconsciente” no paciente, induzindo fenómenos oníricos, e estimulando o funcionamento em processo primário e a associação livre. (Guss, 2022)
Mas a “Era dourada do uso dos psicadélicos”, com utilização e investigação clínica diversa, ficou esquecida perante o aumento do uso psicadélico desregrado e autoadministrado, fora do uso terapêutico e da Academia, influenciado pelos movimentos culturais dos anos 60 (antiautoritarismo, revolução sexual, cultura de libertação de regras e normas), que trouxeram uma forte preocupação da sociedade e suspeita profissional sobre a sua segurança e utilidade clínica, e levando à sua criminalização.
Recentemente, com a descriminalização gradual de alguns Psicadélicos (como a Ketamina, que é habitualmente utilizada como anestésico nas urgências médicas com crianças por ter efeitos secundários menores, mas que em doses baixas produz um efeito psicadélico) alguns Psicanalistas parecem estar a retomar o uso de psicadélicos como auxiliares na sua prática clínica, como catalisadores para suavizar defesas, permitindo o emergir de conteúdos dissociados ou reprimidos, aumentando a associação livre, e possibilitando uma reestruturação do Eu.
Estas substâncias provocam uma dissociação do self (como se uma parte de si se desligasse para se observar), levando o sujeito a “ver-se como um objeto” (Fisherman, 2019), que conduz a um autoquestionamento e a um afrouxar da identidade tal como a conhecemos. A nossa identidade está alicerçada em interpretações (conscientes e inconscientes) das nossas experiências de vida, e em mecanismos defensivos para lidar com isso, produzindo um olhar sobre nós mesmos e sobre o mundo, e um sentimento de continuidade. A experiência psicadélica parece conduzir a uma entrada num estado de consciência e atenção diferente, momento-a-momento, com uma hipersensibilidade sensorial, e liberto da localização no espaço e tempo, semelhante ao funcionamento cognitivo nas crianças pequenas (Gopnik, 2010), permitindo uma abertura para construir novas hipóteses compreensivas sobre si próprio e a sua história.
Outra forma de pensar estas vivências será o “sentimento oceânico”, descrito por Freud (Fisherman, 2019), característico da relação primária mãe-bebé, de fusão (as pessoas no estado alterado de consciência relatam experiências de estar uno com o universo, com a natureza e de amor pelos outros) e dependência total do objeto, anterior à diferenciação do Ego. Para que a criança possa ser autónoma do objeto primário terá, ao longo do desenvolvimento, de construir uma organização defensiva que lhe permita sobreviver sem um objeto externo inteiramente disponível. Quando ocorrem nesta fase experiências traumáticas acentuadas, é criada uma organização defensiva rígida e arcaica, mais tarde desadaptada e responsável pela incapacidade / sofrimento posterior.
A Psicanálise, através da relação transferencial, procura criar as condições para uma regressão (regresso a uma experiência emocional do passado) de forma a, através da atribuição de sentido pela palavra, poder compreender e transformar esta organização defensiva. Mas quando a experiência traumática é anterior à aquisição da linguagem torna-se muito difícil ser pensada e transformada em palavras, e será talvez aí que a medicina psicadélica, pela sua capacidade de reestruturação neurológica/subjetiva, cerebral/mental, poderá ter um papel importante.
Uma revolução neuro-psicanalítica?
Freud deixou a Neurologia e inventou a Psicanálise porque percebeu que existiam “doenças da mente” (neuroses) que não podiam ser explicadas através de uma lesão neurológica, mas seriam o resultado de uma “distorção dinâmica e funcional, algures distribuída entre os elementos estáticos dos centros anatómicos do sistema nervoso”, e que só mais tarde as neurociências poderiam explicar (Solms & Solms, 2000). Criou assim um modelo – o aparelho mental – que permitia compreender de forma dinâmica, psicológica, as forças em jogo, nas “doenças da mente”.
Estaremos agora perante substâncias que nos vão permitir fazer a ponte entre a Psicanálise e as neurociências?
Freud trocou a hipnose pelo método da associação livre e os sonhos como vias de acesso ao inconsciente porque percebeu que aquela, apesar de provocar um estado alterado de consciência que permitia a remissão dos sintomas físicos nas neuroses, estes voltavam a partir do momento em que a consciência era recuperada pelo paciente. Permitirá a viagem psicadélica, acompanhada pelo psicanalista, uma dissociação da consciência conduzindo o sujeito a uma viagem ao inconsciente de forma lúcida e consciente, em que uma parte viaja ao inconsciente reprimido (processo primário) e outra parte observa, e posteriormente recorda, abrindo assim uma nova via de acesso à mudança?
Estou convencida de que a prática e investigação clínica – empírica ou estudo de caso – assim como os avanços nas neurociências, vão-nos dar respostas muito em breve…
É esse caminho que, já no próximo dia 15 de Abril, estarão a fazer psicanalistas de todo o mundo, no “Psychoanalysis & Psychedelics Symposium”, uma discussão internacional (online) organizada pela APsA (American Psychoanalytical Association).
Imagem: da autora (criada com programa de Inteligência Artificial)
Referências
Fischman, L (2019). Seeing without self: Discovering new meaning with psychedelic-assisted psychotherapy. Neuropsychoanalysis. Routledge.
Gopnik, A. (2010). O Bebé Filósofo – o que as mentes das crianças nos dizem sobre a verdade, o amor e o sentido da vida. Círculo de leitores.
Guss, J. (2021). A Psychoanalytic Perspective on Psychedelic Experience. Psychoanalytical Dialogues. Routledge.
Solms & Solms (2000). The historical origins of psychoanalysis in neuroscience. Clinical Studies in Neuropsychoanalysis. London & New York, Karnac Books.
Vaid, G. & Walker, B. (2021). Psychedelic Psychotherapy: Building Wholeness Through Connection. Global Advances in Health and Medicine. Vol 11: 1-5