Parece piada de mau gosto, decretar o fim da paranóia na conjuntura actual: os glaciares esvaem-se deixando a céu aberto carcaças de animais que nunca mais existiram e morreram de doenças que nem podemos imaginar.

Incêndios dantescos e teorias sobre espectros sincronizados. A Europa que hesita, prensada por finanças que fedem e nacionalismos que avançam à boleia das migrações e do esquecimento global. A Rússia que sobrevoa e fareja oportunidades. Algumas Américas instáveis e em retrocesso civilizacional. E o impensável: em cada casa-sim-casa-não parece germinar alguém disposto a matar-nos. Apontam-se diferentes nortes, como se o campo magnético sofresse mais rotações por minuto que um antigo vinil em gira-discos desenfreado. Sentimo-nos os dilectos órfãos da previdência, quando parece cada vez mais claro que o mundo correu mal.

O conceito em causa (o de paranóia) é dos mais viciados, usado de forma indiscriminada, para significar transtorno emocional, qualquer que ele seja. O impacto do termo ainda é forte e já há muito que, pelo menos em contexto popular, assumiu funções de jargão sincrético para os mais intensos estados da alma. O rigor com que é aplicado segue uma trajectória inversamente proporcional à da massificação.

‘Paranóia’ refere-se, nos universos psi, a sentimentos e ideias persistentes de desconfiança excessiva, pouco permeáveis à crítica. Num mundo em sobressalto é difícil pensar a paranóia como fenómeno mental, intrapsíquico e respeitante ao indivíduo; quanto muito partilhado por apenas alguns. Não é que tenha deixado de o ser, mas a distorção a partir de dentro parece encontrar um verdadeiro eco na realidade externa, facilitando-se, validando-se. Como abordar construções mentais irrealistas se os acontecimentos parecem confirmá-las?

Alguns graus de paranóia, dependendo do contexto em que se inscreve, podem ser essenciais à sobrevivência. Um soldado que, em teatro de guerra, não desenvolva determinados níveis de funcionamento paranóide será um soldado morto. Mas fora desses cenários facilmente se caminha pelo plano do real como se este fosse uma continuação do delírio privado. Inamovível e escudado pelos recém-chegados ao seu território (hordas iniciáticas no descortinar de homens-do-saco), o paranóide deixou aparentemente de o ser.

É deste caldo que brotam novos líderes, geralmente os mais hábeis a articular a perseguição, a atribuir ao Outro a génese do mal-estar na civilização. Se, em paz ou prosperidade, cada um tem que se haver consigo próprio; em guerra ou bancarrota espalha-se o mal pelas ideias. Aquela parte da mente que procura fiéis depositários para os seus demónios abocanha a oportunidade, fundindo-se no cenário. Em tempos conturbados, caminhamos sob o sol de Mersault.

Imagem: Paulo Azevedo

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