A realidade em que hoje vivemos, ditada pela crise pandémica, impõe limites novos e desafia outros, outrora firmados e estabelecidos. Nesta espécie de paradoxo – cuidadosamente separados e muito distantes, na rua, MAS confundidos, em casa -, procuramos viver… ou sobreviver.
Se é verdade que as autoridades sanitárias sublinham a necessidade de usarmos protecções externas – máscaras, luvas, viseiras –, como barreiras que nos protegem da infecção por COVID-19, e circunscrevem a nossa liberdade, remetendo-nos para uma vida intra-muros, não é menos verdade que o dia-a-dia desta Era (?) atenta contra as fronteiras clássicas, nomeadamente as que separavam, outrora, o mundo do trabalho e da escola de outro, mais privado e familiar, que as nossas casas e apartamentos tão bem representam.
Se quisermos, em certo sentido, podemos conceber a educação e o crescimento como um processo em que o sujeito se expande através da adopção cumulativa de limites. Nesta perspectiva, a maturidade comportará a internalização de fronteiras várias.
Os limites, antes de mais, definem-nos em termos identitários, permitindo-nos uma separação entre Eu e Outro, entre Imaginário e Real, entre Dentro e Fora. A internalização destas barreiras constituirá sinal de robustez identitária. Dentro desta lógica, sabemos que a falta de limites internalizados pode redundar na porosidade dos mesmos, cuja expressão psicopatológica é bem conhecidas dos clínicos: o universo ‘borderline’, um território tão estranho à contenção e delimitação…
Efectivamente, ensinamos as crianças a conterem-se, paulatinamente. Desejamos que, uma vez crescidas, as mesmas crianças contenham impulsos e os secundarizem, ajam e se comportem com respeito pelos demais e por elas próprias. Convidamo-las a exprimirem-se pela palavra e pensamento, veículos que nos permitem aceder à liberdade psíquica e às suas expressões criativas. Dito de outro modo, educamos para que se instaure uma progressiva capacidade continente – para retomar e feliz formulação de Bion -, que se traduz na possibilidade de sermos, prosaicamente, [pai e] mãe de nós mesmos.
Nos antípodas deste ideal de maturidade (?), encontramos a incontinência, a permeabilidade excessiva, a falha na defesa contra a intrusão, a explosão, entre muitas outras possibilidades. Exemplos disto? As birras extemporâneas e outros problemas de comportamento (o agir patológico, a criminalidade, entre outros). Imagine-se um sobretudo com buracos múltiplos, a ponto de ver seriamente danificada a sua capacidade de, delimitando, proteger do frio quem o envergue.
A outro nível, penso que a internalização de limites – como disse, reveladora de crescimento – implica o reconhecimento das vulnerabilidades humanas: somos imperfeitos, falhamos e estamos condenados a uma relativa impotência…
Aceitar a nossa condição errante, imperfeita, também condenada à falha – uma falha relativa, é certo – não é sinal de fraqueza, antes revela maturidade e discernimento.
Bem vistas as coisas, omnipotência e adultícia não partilham grandes afinidades.
Neste contexto pandémico, distópico, em que vivemos, DENTRO e FORA são dimensões sujeitas a uma problematização, a uma metamorfose… ou a um atentado!
No exterior, somos coagidos a sublinhar a separação entre nós e os demais, em nome da protecção contra o mal infeccioso, assim reforçando limites, exercício que também redunda num distanciamento e/afectivo. Já intra-muros, num universo também investido uterinamente – #Fique_em_casa, assim diz o mantra, que nos mobiliza para onde (dizem) estamos a salvo -, reina o deslimite, sob o signo de uma porosidade imperial: a casa é invadida pela escola, pelo escritório, sendo, em simultâneo, partilhada por pais e filhos… Dormimos na escola, trabalhamos onde tomamos as refeições, brincamos num recreio cheio de adultos, estudamos no escritório dos pais, entretanto invadido pelas aulas virtuais de ginástica dos miúdos…
De um dia para o outro, FORA passou a rimar com distância, e DENTRO com confusão e intrusão… na melhor das hipóteses, com desprotecção…
_____
Magda Szabo (1917 – 2007), uma grande escritora húngara, vítima de uma inclassificável perseguição política em meados do século XX, no superlativo romance Rua Katalin (Cavalo de Ferro) desafia outros limites, socorrendo-se da criatividade. Com génio, subverte a lógica temporal, encerrando (quase) a obra com uma sentença esmagadora. Referindo-se a um personagem que morrera, ainda criança, em circunstâncias dramáticas, perto do termo do livro, diz-nos a grande senhora: “Era a primeira vez que falava desde que fora assassinada.” (pág. 190)
Não me recordo de uma subversão me comover tanto, a ponto de questionar os meus próprios limites… e fazer-me ultrapassar a barreira de caracteres imposta ;)))”