O sublime morreu

O sublime possuiu, como categoria estética, uma vida curta e atribulada. 

Se exceptuarmos a sua referência por Longinus e nos centrarmos no eixo que nos liga ao Romantismo, a referência ao sublime surge com particular proeminência em Edmund Burke, em 1757, e, posteriormente, em Kant, sobretudo na Crítica da Faculdade do Juízo, de 1790.

Para lá das múltiplas diferenças de abordagem do sublime nos dois filósofos, o sublime ficou inscrito como um sentimento estético complexo que pertence à dimensão do prazer negativo (em Burke), ou como uma forma de conflito em relação a algo que nos ultrapassa e avassala, que nos estranha e parece incontrolável, mas que, pelo exercício da razão, pode ser ficcionado e imaginado (em Kant).

O estabelecimento do sublime como categoria estética representou um elo entre o século XVIII e o início do século XXI, exercendo uma ponte ou uma série de conexões que foram assentando, a partir do início do século XX, sobre dois eixos contraditórios: uma «malaise de civilization», que estrutura a possibilidade de a estranheza se afirmar como o sentimento estético da modernidade, na conflitualidade entre a distância da análise e a vertigem do incontrolável, e a versão sublímica da heroicidade, que, enquanto narrativa, iria atravessar o imaginário dos grandes projetos autocráticos, desde Mussolini até ao Terceiro Reich, ou de Estaline à Coreia do Norte. Em ambos os casos, o centro do pensamento sobre o sublime torna em redor de um pensamento estético sobre a força e a sua relação com o poder, quer nas formulações de origem kantiana, herdeiras de uma teoria da subjectivação, quer no seu contraponto autocrático, como fascínio pela possibilidade de representação do poder que coincide com a força, ou o seu exercício representacional.

É por esse motivo, porque aqui se jogam as duas faces de Janus, que é muito difícil, nas décadas posteriores à Segunda Guerra, manter uma posição política sobre o legado fílmico e fotográfico de Leni Riefenstahl ou a arquitectura de Albert Speer. Como afirmou Thierry de Duve, a questão é que se baralharmos numa mesa as imagens fotográficas de Leni Riefenstahl e de Alexander Rodchenko, o grande artista soviético e pioneiro do construtivismo, teríamos enorme dificuldade em as distinguir.

A herança do sublime kantiano, no entanto, pertence a uma outra linhagem, suscitando um conjunto de questões que abririam o campo para um entendimento da estética como uma possibilidade do exercício da sensibilidade mais próxima da conflitualidade interna do sujeito do que do usufruto de um prazer vinculado a uma representação.

António Marques, na introdução à sua tradução da Crítica da Faculdade do Juízo (Lisboa, INCM, 1998), de Immanuel Kant, resume o contributo da Terceira Crítica para um entendimento contemporâneo da estética de uma forma particularmente clara: a abertura do sublime para o estranho e incontrolável, «aquilo que em grande parte corresponde ao conceito freudiano de Unheimlich»; a abertura à representabilidade do sem-forma e, finalmente, a «abertura de uma estética que abandona o desejo de mimesis para explorar os domínios do acontecimento sem referência objectivante».

Para compreendermos a amplitude desta brilhante síntese, devemos retornar ao texto de Kant, nomeadamente na Analítica do Sublime, ao famoso §28 ― «Da natureza como um poder», no qual é produzida a seguinte definição: 

«Poder é uma faculdade que se sobrepõe a grandes obstáculos. O mesmo chama-se força quando se sobrepõe, também, à resistência daquilo que possui ele próprio poder. A natureza considerada no juízo estético como poder que não possui nenhuma força sobre nós, é dinamicamente-sublime

É na sequência desta definição que surge a famosa descrição dos fenómenos naturais: «rochedos audazes e proeminentes […] ameaçadores, nuvens de trovões […] relâmpagos e estampidos, vulcões na sua inteira força destruidora, furacões deixando para trás devastação, o ilimitado oceano revolto, […] tornam a nossa capacidade de resistência de uma pequenez insignificante em comparação com o seu poder. Mas o seu espectáculo só se torna mais atraente, quanto mais terrível ele é, contanto que, somente, nos encontremos em segurança; e de bom grado nomeamos estes objectos sublimes, porque eles elevam as forças da alma sobre a sua medida média e permitem descobrir em nós uma faculdade de resistência de espécie totalmente diversa, a qual nos encoraja a medir-nos com a aparente omnipotência da natureza […]. Portanto, a natureza aqui chama-se sublime simplesmente porque ela eleva a faculdade da imaginação […] mesmo acima da natureza.»

O sublime é, portanto, não uma consequência do espectáculo da natureza, mas da capacidade de, a partir de um lugar de segurança, ampliar as faculdades do sujeito que não se deixa subjugar a um poder (da natureza), porque possui, ou em si encontra, uma força maior.

O contexto desta proposta de um sentimento estético complexo, que parte da estranheza para uma possibilidade de desenvolvimento da força como capacidade subjectiva que se sobrepõe ao poder, representa uma crença humanista, mas também a possibilidade de um ponto de vista seguro, sem o qual não há possibilidade de um sentimento estético ― só o medo pode sobrevir.

A possibilidade do sublime está, necessariamente, vinculada à possibilidade de um regime estético de presentificação do próprio sublime no interior do regime da arte, seja da palavra, da imagem ou da acção, para utilizar a terminologia de Jacques Rancière. A possibilidade de verter em palavras ou imagens a intensidade da força que se sobrepõe ao poder ocupou grande parte das grandes narrativas da heroicidade artística dos séculos XIX e XX, sob a forma das grandes imagens paisagísticas do romantismo, das dessubjectivações dos movimentos operários e das suas narrativas, de várias versões da conquista da possibilidade do sensível sob a forma da resistência ou da sublimação do trauma (desde os expressionistas abstractos norte-americanos à imensidade das instalações de James Turrell ou de Michael Heizer), num percurso de estabelecimento de regimes de sensibilidade nos quais a ordem do sentir é indistinguível da ordem da produção de sentido.

Em sentido contrário, também os regimes autocráticos foram construindo estéticas de dominação que, reivindicadas do sublime, definiam projectos identitários de conquista assentes sobre uma ideia de identificação do poder com a força, teologizando a noção de sublime nas grandes paradas e na dissolução do indivíduo na avalanche do exercício de uma estética autocrática do poder ― e instaurando a ideia de que o único lugar seguro é no interior do poder, porque só aí se pode exercer a grotesca simbiose do poder com a força.

Um tal desgaste da possibilidade do sublime, tal como Kant o introduziu, é agora sujeito a duas condições que podemos considerar inultrapassáveis:

Por um lado, a evidência de que, no actual estado do Antropoceno, não há um lugar seguro que permita a temporalidade da contemplação do poder da natureza, porque o momento da possibilidade de produzir imagens ou palavras que não a sumária representação se esgotou.

Por outro lado, o estabelecimento de uma dinâmica política que se exerce na brutalidade que exclui a possibilidade da palavra, do discurso de representação ou de qualquer dialógica argumentativa (como é o caso da exaustão linguística que não admite exterior argumentativo de Trump, Musk, J.D. Vance, Putin, Netanyahu e tantos outros) impede qualquer sublevação da imaginação e tolhe qualquer formação que parta da ordem do sensível.

Num certo sentido, o campo criado por uma situação global de fragmentação, substituição da representação por dinâmicas pessoais, desestruturação dos protocolos de relação que estruturam as relações de poder, substituição da inteligibilidade dos discursos por formulações teológicas, substituição da tentativa da representação do real por um controlo crescente do discurso possível emanado de poderes crescentemente desregulados e a dominância de uma noção da inevitabilidade da catástrofe ambiental ― o poder inevitável da natureza burilado na nossa desordem ― criam uma medievalização cultural e uma feudalização política que é pré-estética.

E essa é a ordem do medo e da insegurança.

O mundo do sublime, e ele próprio, está no seu ocaso.

Que nos resta? Provavelmente, reler Spinoza e deixar que não seja a força, mas as modulações de intensidade das nossas partilhas sensíveis a deixar entrar o ar e aí encontrar algum espaço de empatia.   

Fotografia: João Santana Lopes

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