fotografia: Paulo Azevedo Pode parecer redutor ou humilhante para o ser humano entender que as relações que tem com as coisas e os objectos podem ser comparadas com as outras que entretém com as pessoas e com o conhecimento. É como se fosse pacífico assumir que a qualidade das relações humanas e intelectuais tivesse ficado abrangida pela mesma tonalidade instrumental, efémera e desmemoriada que molda as nossas práticas de uso e consumo, aliás, de consumação. Seria como revelar a falta de excepcionalidade que costumamos projectar nas actividades humanas, sendo-se assim levados a reconhecer as pessoas e os símbolos culturais como desvitalizados e desfigurados; seria como comprovar que comummente desassociamos o agir do pensar, e o pensar do sentir, bem como encaramos a relação com o espaço e o tempo num circuito auto- referencial e desprovido de horizontes mundanos. A nossa maneira solta e frenética de lidar com as coisas, a indiferença que caracteriza a maneira de as considerar, revelaria a relação de subordinação que lhe projectamos perante o uso que pretendemos fazer delas. Porém, a decepção em compararmos, e até nivelarmos, tais atitudes com as que abrangem as esferas interpessoais e culturais resultaria de uma ideia radicada de ser humano elevado pelos seus atributos subjectivos e espirituais. De facto, conceber as coisas como algo ao nosso serviço pode acarretar um conjunto de equívocos, impedindo-nos, por um lado, de retirar delas o seu estatuto enigmático de cosidade, o potencial libertador que elas guardam na sua generosa disponibilidade e exterioridade, a voluptuosidade conceitual e a reflexividade estática que as suas virtualidades inesgotáveis tornariam possíveis. Por outo ado, outro equívoco seria o dos seres humanos considerarem-se a si próprios (ecoando o freudiano narcisismo das pequenas diferenças) inconciliáveis com o estatuto dos objectos, refractários às suas qualidades e agentividades, isto é, às suas capacidades de nos orientarem cognitiva e afectivamente com as suas ventriloquias. Afinal de contas, é como se andássemos a dissimular quão atrelados e entregues estamos à dimensão do inorgânico, quão inutilmente pretendemos desconsiderar que mais do que agir sobre as coisas, reagimos a elas; e também quão nos atarefamos a denegar o quanto elas nos atraem até o ponto de desejarmos, escondidamente, sermos nós também uma coisa. Neste sentido, existe uma longa tradição literária, cinematográfica, antropológica, arquitectónica, filosófica das artes performativas que tem concebido o o inorgânico numa perspectiva de (mutuando as palavras de Walter Benjamin) sex appeal imanente ou (retomando uma expressão de Karl Marx) de sensibilidade supra-sensível. Seria esta uma rendição ao materialismo abstracto, ao fetichismo da mercadoria, à reificação da vida humana? Poderia ser, como também poderia representar uma saída da condição antropocêntrica para uma outra antropocentrífuga, isto é, um salto para uma maior busca de aproximação e simetria com a materialidade do mundo, uma experiência de dessubjectivação correspondente a um aparente desejo de impotência. Parece paradoxal, mas termos engajado com as coisas uma rivalidade de tipo mimético, algo que René Girard tem explorado e perspectivado no âmbito das relações entre humanos como matriz antropológica da nossa civilização hierarquizadora, pode (de)instituir a vontade de omnipotência, resvalando-a num abandono de tipo heideggeriano à contingência e porosidade terrestre. Contudo, tal desejo de impotência, ou este estado de abandono receptivo ao mistério da cosalidade e da sua abertura, não remeteria para um estado irénico e pacificado entre as diferenças, ou para uma indiferenciação entre seres e coisas, assim como não conduziria para um niilismo vítima da morte de Deus, de um splengeriano declínio do Ocidente ou de uma andersiana vergonha prometeica perante o desenvolvimento de máquinas cada vez mais percepcionadas como sapiens. Deve-se ao filósofo Mario Perniola a capacidade de ter reflectido um aspeto essencial da nossa cultura e sensibilidade contemporânea através do prisma do sex appeal do inorgânico. Neste sentido, o sex appeal do inorgânico seria algo que foge às identidades e às presunções humanísticas-espiritualistas, mas, pelo contrário, repousa erraticamente numa «coisa que sente» ou num «sentir como uma coisa». A condição de experiência da coisa senciente não nivela as diferenças, mas destaca a infinitude das suas dobras, as quais tecem e ligam (não hierarquicamente) as coisas, os minerais, as plantas, a técnica, os corpos… num registo contínuo de apelo filosófico- sexual do inorgânico para o inorgânico. Um exemplo contemporâneo desta dimensão experiencial excêntrica de sentirmos como uma coisa e de sermos mais próximos das coisas do que gostaríamos de pensar vem de algumas aplicações de inteligência artificial. Contrariamente à perspectiva da era da electricidade representada por McLuhan, que, em Understanding Media, concebia os meios tecnológicos como exteriorização/extensão das capacidades humanas, na era digital deparamos com fenómenos que também vão na direcção da interiorização destes meios. Entende-se por interiorização o uso de alguns dos nossos órgãos corpóreos, sendo perspectivados como partes integradas de aplicações digitais que utilizam o nosso suporte orgânico para desempenhar as suas funções tecnológicas. Por exemplo, há serviços digitais que transformam o nosso órgão mais extenso, a nossa pele, num suporte de touch-screen, como é o caso da VEST (versatile extra sensory transducer), idealizada para facultar uma substituição sensorial para os surdos, mas também utilizada como instrumento de suplemento sensorial. Assim como há cada vez mais pensos e tatuagens smart utilizadas para monitorizar e mostrar dados sobre a nossa saúde, funcionando como display, ou outros que são utilizados como trackpads para gerir displays e funcionar como interfaces tácteis para a troca e partilha de dados. A nossa pele tornar-se-ia assim um touch-screen, que, ao tocar com os nossos dedos, nos devolveria a informação, desempenhando a função de augmented skin. Um exemplo culturalmente mais emblemático e vertiginoso de sex appeal do inorgânico são as tecnologias que exploram a nossa retina para optimizarem as suas funcionalidades, como é o caso da criptomoeda biométrica Worldcoin, realizada pela OpenAI, baseada na identificação pessoal através do scanner da íris realizado pela câmara do smartphone. Aqui, não temos apenas a demonstração de como a nossa corporeidade funciona como «prótese» da tecnologia, mas também de como tal acoplamento orgânico-inorgânico está ao serviço do representante supremo de todas as coisas, da sua virtualidade máxima, o dinheiro.

Veja Algumas das Nossas Publicações