
Giovanni Battista Piranesi
Em Portugal, têm como nome comum «ruína» duas espécies de plantas herbáceas (Wahlenbergia hederacea e Cymbalaria muralis) que crescem em fendas de rochas, em muros e — ruínas. Nesta homonímia metonímica, o ser vivo adquire a designação do substrato inerte — morto —, no qual se enraíza e com o qual se funde. Esta identificação poderia metaforizar a identificação narcísica ao objeto perdido — morto —, que Freud descreve em «Luto e Melancolia» (1917).
O tempo autoriza o vegetal a fundir-se com o mineral. Seiva a circular nos veios do calcário. Primevos líquenes, briófitos; os vasculares fetos, as modernas herbáceas «ruínas». As sucessivas eras botânicas irmanadas com as épocas humanas, num tempo presente diacrónico; num lugar que pode ser umbroso ou solar. O inorgânico, o orgânico e o cultural condensados em objecto ou representação. Giovanni Battista Piranesi (1720 – 1778), o inventor da ruína como objecto maior da arte neoclássica, refere no terceiro volume da sua Antichità romane este conflito entre a arte e a natureza, a qual reincorpora os elementos próprios, transitoriamente retirados pelo Homem: fatte piú delle nature che dell’arte. Numa analogia que as repetições da História prodigalizam, no século XIX, no Lazio, na Campagna romana, ainda se queimava o mármore das ruínas romanas dilapidadas, para obter cal agrícola — o Homem a devolver à natureza o que séculos antes lhe subtraíra, a alimentar o orgânico com o inorgânico, o natural cultivado com o artificial destruído, numa espécie de sobredeterminação rizomática (que é também a que descreve a boa psicanálise — e que é pela boa psicanálise descrita).
Visitar uma ruína é regressar a um lugar onde não estivemos; ou, com acréscimo de precisão poética: a contemplação de uma ruína é um portal para um tempo mítico de onde provimos. A ruína dá corpo e imagem a um desejo antigo, do qual nos autoriza tomarmos posse. O alento de uma nostalgia, como um náufrago do tempo que revive na praia: ei-la, a ruína, como respira! A velhice eterna rediviva, perante o Eu.
Na sua placidez mineral e vegetal, a ruína, ou a sua representação imagética — «a imago é acima de tudo a imagem do morto» (Agamben, 2005) —, integra constituintes primitivos, orgânicos, indiferenciados — conotados com o Id da segunda tópica freudiana (Freud, 1923) — e dimensões associadas ao Eu — elementos arquitectónicos, escultóricos e pictóricos; epigramas, traços histórico-culturais. Esta condensação de elementos evocativos de ambas as instâncias, harmonizadas e em silencioso diálogo, gera, no sujeito que observa a ruína — ou se compraz perante representações desta —, uma experiência intrapsíquica simultaneamente apaziguadora, conciliatória e criativa: uma amenização da função superegóica de organização e discriminação da realidade, numa vigília contemplativa mais próxima do pensamento onírico, porque apoiada na fantasmatização do sistema pré-consciente.
O sortilégio desta contemplação poderá fundar-se no encanto nostálgico atribuído ao que se perdeu, de que a ruína pode ser emblema. Uma estética da melancolia e a negação material da perda do objecto, em ausência presente — ou a sombra holográfica do objecto caindo sobre o Eu, que se apraz, narcisicamente, observando(-se).
Charles Baudelaire, n’As Flores do Mal, inicia o poema LXXVI Spleen, com o verso: «Memórias tenho mais que se tivesse mil anos.» Jean Starobinski (2012) assinala a autofiguração melancólica com que o autor conclui o poema: «– Ó matéria tão viva! és apenas agora/Um granito envolvido por vago pavor,/Dormitando no fundo de um Sara brumoso;/Velha esfinge que o mundo, negligente, ignora/Já esquecida no mapa, e cujo estranho humor/Canta apenas aos raios do sol que se põe.» Como quem dissesse: a matéria da ruína sou eu, na minha monumental, apavorada e sombria solidão, na eternidade de um ocaso que celebro. A identificação ao objecto perdido, monumentalmente presente: Jules Cotard descreve, em artigo dos Annales médico-psychologiques, de 1880, delírios de enormidade em formas graves de melancolia ansiosa, caracterizados por uma convicção de imortalidade e sobredimensionamento monumental do corpo (idem, ibidem).
Recentrando a navegação: saibamos, em nosso ofício, não esquecer as (psicanalíticas avant coup) palavras de Stendhal acerca da contemplação das ruínas de Roma: «[admirem-nas] imaginando o que falta e abstraindo do que existe» (in António Mega Ferreira: Roma. Exercícios de reconhecimento, 2003).
Freud não conseguiu abstrair-se do que existe à saciedade nas (anti-)ruínas de Pompeia. Talvez a visão da morte fixada numa transtemporalidade que a nega e que mantém o passado presente, sem as camadas, as erosões, as destruições e misturas de outras ruínas, tivesse desencadeado em Freud uma posição maníaca perante a pletora de signos e objectos intactos e tangíveis do passado. Aparentemente, em Pompeia — que conheceu primeiro nos livros, e depois em viagem com o seu irmão Alexander —, contrariamente ao vivido em Roma ou na Acrópole, «não houve angústia, Unheimlichkeit ou perturbação da memória» (Pontalis, 1986).
Dir-se-ia inebriado de literalidade, Freud em Pompeia. Essa disposição ter-se-á plasmado na apropriação que fez da novela de Wilhelm Jensen intitulada Gradiva: uma ficção pompeiana (1903), na qual terá visto uma espécie de concretização da fantasia psicanalítica, que explorou na forma de psicanálise literária e epistolar do seu autor, para quem inventou parcialmente uma biografia. Jensen respondeu com elegância ao abuso: «[o conjunto da obra] não tem nada a ver com uma experiência que eu tenha vivido no sentido habitual da palavra», acrescentando: «é, em toda a sua extensão, uma fantasia; avança, num passo sonâmbulo, sobre um fio que não é mais largo do que a lâmina de uma faca. É, no fundo, o que acontece em toda a criação literária». Nesta troca epistolar, é Jensen quem está mais próximo da posição psicanalítica. No apego à concretude de um determinismo infantil fantasiado (com genial aproximação, mas, ainda assim, fantasiado), Freud — como sugere Pontalis — ignora a natureza da criação literária, do trabalho do sonho, da vida inconsciente, bem como o caminho das representações e até mesmo a função de interpretação.
Uma ruína define-se como constelação significante que emerge de uma amálgama fragmentária.
Freud orientou sempre a comparação dinâmica e variável que fez entre o trabalho psicanalítico e o arqueológico, num mesmo, imperativo, sentido: saxa loquuntur ― as pedras falam. Outra vez Pontalis (ibidem): «As pedras, sim, mas com a condição de falarem! Por outras palavras, em psicanálise, nunca teríamos de fazer uma ressurreição completa do passado […] porque o passado, mesmo o mais distante, arcaico ou infantil, é sempre um passado presente e, portanto, nunca um material em bruto que bastasse fazer aparecer, cautelosamente, para reencontrá-lo inalterado.»
Vindas do passado, as palavras de Piranesi, na sua prima parte d’Architetture e Prospettive (1743), encontram o pensamento de Freud e de Pontalis: «Estas ruínas falantes encheram o meu espírito de imagens.»