I.

Os rouxinóis não te deixam dormir em Platrès.

Obcecavam-nos os versos por culpa destes lugares que não eram para trilhar, para tanger. «Platrés», dizíamos, e sentíamos a voz como se lendo Epidaurus, Efeso, Mileto, Paestum, todos os nomes estrondosos das cidades idas, inviamente mortas na margem dos seus rios, todos esses modos de apelar o paraíso, jamais à frente,

as nossas vidas são fascinadas pelo acto em que nasceram —,

ou não migram as aves colmatando a terra falha?, os retalhos saudosos da pele vasta, indivisa, e se os primeiros nomes estrondam:
— Pangeia.

Perseguiam os nossos corpos, tantas vezes, o cumprimento dos velhos desejos da terra. Sem que o percebêssemos. Estávamos certos de que a vida servia para negar a vanidade aos elementos, e a cultura para extremar essa negação — evitar a incongruência de um mar ondeado para nada, poder dizê-lo, enfim, portante. Do resto, suspeitávamos muito vagamente,

mas éramos: atalhos fraquejantes, em vão apressando movimentos tão extensos, tão lentos, chorando estalagmites, atando os continentes com fios de vento, repetindo da Terra o espírito e o esquema, que se o paraíso surpreendemos sempre atrás, é tão-só para que tentando regressar-lhe circulemos, dancemos o planeta volvendo sobre si próprio, o modo como circunda o Sol, o modo como a Lua circunda a Terra — entre todos os astros este… entre todos os astros…

este que se submete a este astro inesquecível

A cada princípio amado que desejamos retocar, emulamos a locomoção dos astros. Todas as leis da física se narram no nosso desejo.

De qualquer modo, o paraíso nos nomes. E a altura da voz dizendo estes sonhos, a linguagem no seu justo meio, que nunca palavra alguma serviu o presente, sempre o impossível, o perdido atrás, o desejado adiante, as cidades cujo génio, incapaz de perpetuar nos habitantes morrendo a seu passo, par passo, esfumava. Atentávamos então às pedras. Deixando de ouvir. Assim a escrita. No nome refugiava-se qualquer resto,

ou eram as nossas projecções?

Como o desenho dos continentes remontava às suas versões primitivas, assim os nossos sonhos remontavam à verdade. Nos fragmentos, não tínhamos como não sentir a expressão do todo, o seu alcance. Esses dentes de mármore rutilando na noite, quem lhes chamasse símbolos. Era da nossa completude ao arrepio trazida em lampos pelos sonhos emissários que tínhamos medo. Temíamos a precipitação pelo sonho na vigília, jamais
reversível, a que nunca morde a cauda. Qualquer nova frase precisa de acabar com a anterior:

o sono era um ponto, abrasada a gramática, um poro no tempo,
— uma lâmina?,

no seu núcleo — de sonho — formulava-se o pendor da nova frase. Ariadne adormecia, segundo o desejo dos deuses, para que despertando pudesse desempenhar o seu novo destino. Assim a fábrica usando a manhã. A redestinação começava num pesar de pálpebras. Era preciso cair no sono, dar-se à cisão.

Os grandes espectadores, os que ocupavam a vida sob as saias da razão e da temperança — nós?, os que temiam Maio —, sucumbiam diante desta potência; temiam os poros no tempo que desejavam inconsútil, sabiam poder despertar encarregados. Bastava apenas que a pausa aprofundasse, que o pendor alvejasse. Este medo,

ainda tão a montante de qualquer rouxinol.


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Não era o ventre desmoronado, a abóbada desfeita expondo-nos ao gelo cósmico, os rombos tectos graníticos rendendo o brilho da pele anoitecida. Sabíamos da nossa fraqueza: Nut expunha-nos o ventre inerme sem receio de ser ferida, o seu dorso escudando-nos de qualquer golpe — a vigia.

E se a tivéssemos suposto em ponte — o umbigo exibido aos vórtices das galáxias, contendendo-os —, se assim a pudéssemos ter suposto —

arqueada não sobre mas contra a terra, a história inteiramente outra. Dissemos, nem sequer lembrados do Sol: não faz mais frio?

Não era também a culpa, ou a angústia, um cálice demasiado pesado no Jardim das Oliveiras, nem mesmo esse medo de despertar com um destino radicalmente executável entre mãos, testarmos os prodígios da iludível morte — a irmandade gémea de Hipno e Tânato ilustrando. Nada disso. Antes:

os rouxinóis: um paraíso demasiado enfático para nos deixar dormir.

Encobríamos cada uma destas penas?


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Nesse Egipto das noites ventradas, acontecia frequentemente a animalização dos deuses. O divino despontava no lugar onde algo se perdera, no espaço desertado pelos nossos sentidos de súbito diminuídos, emagrecidos, pelo vigor declinante em resultado das armas laboradas. Se nos superávamos era apenas proteticamente, numas quantas extensões de pau e pedra, de osso e fogo. Até que o ondear da noite nos devolvia como corpos que o mar não quisesse. O sono reconduzia-nos à naturalidade, forçava-nos a depor as armas. Sabíamos que o nosso corpo se afastara da possibilidade sagrada na exacta medida em que se desnaturara. O ouro vinha então render-nos as falhas enquanto corpo fabuloso, mascarando de um outro sangue o rubor da vergonha — servia a terra, tantas vezes, os velhos desejos dos vivos. Tínhamo-nos desenhado tão débeis, a linha ao lado de um bisonte eviscerante, cheio de carne e gesto, fazia doze mil anos. Já então sabíamos ter fraquejado. Já então desejávamos, não aquilo que perdêramos, mas aquilo em que se transformara o que perdêramos, o seu gigantismo, puramente por razão de o desejarmos — não a animalidade, mas a divindade. O nosso desejo retrógrado sublimara o lugar da perda. O nosso sono precisava de ser vigiado, mas condicionalmente:

divinamente vigiado, os nossos olhos divinamente delegados. O sono — o natural, negligente, desprovido — era um privilégio dos ferozes; imaginar Nut em ponte,
sem cuidar a vigia, defendida da terra pela coluna vertebral, pela espessura dos músculos, o mesmo: um privilégio de ferozes. Assim diríamos,

sempre, no entanto, erradamente. A imaginação dos deuses — sobrenaturais, diligentes, totais — não era senão um privilégio dos débeis.

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In medio uero omnium residet Sol.

Nenhuns braços humanos teriam a força de escorar o seu total desamparo. A tensão da concavidade lassa: a Noite cede, derrama-se sobre nós como uma água fugidia.

Os lobos deixam de uivar a rebate.
Quem poderia recair no sono?


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Quando voltássemos a suplicar «vigiai», o ar expirado correria paralelo à terra.

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Com os despojos de uma cúpula derruída, levantar um muro. O estaleiro do Jardim do Éden a partir de uma queda — outra queda.

O sono era essencialmente paradisíaco. Se adormecíamos era por sermos capazes de evocar duas ou três feições do paraíso que o restauravam artificialmente no território da sua plena supressão — três pontos para um plano, para um jardim quantos eixos reverberantes da luz clara?, quantos
— mirtilos ponderosos, anonas espraiadas, o ouro disseminado na queimadura das uvas brancas, uma voz viciada: vivre d’amour et d’eau fraîche, sopros encanados resgatando ao vento umas quantas réplicas, os dedos dos pés gelando

da água há pouco surgida e já corrente,

perturbarmo-nos da luz.
Os sentidos aplacavam o seu hábito na fuga, convenciam-se de um seu destino outro. Os muros levantavam o paraíso, a construção espacial propícia ao sono, primeiramente ao sono, senão reparem: o lugar sem predação.

Que o nome das primeiras cidades nos pareça paradisíaco não decorre então apenas da adesão à origem, da inclinação ao regresso devindo ciclo, esse mecanismo segundo o qual nos alinhamos com as revoluções das esferas. Mas sobretudo de serem esses os primeiros nomes a dizer o afastamento definitivo da ameaça de predação. As sílabas dóceis. A cidade era a indutora de sono; a Natureza escolhida, cercada a eleição, o mundo refeito. Era Verão,

quando Apolo chegava a Delfos, regressado da pátria do Vento Norte. A paisagem sublimava-se para recebê-lo. Dois elementos portavam da Natureza a voz: as cigarras e os rouxinóis. Ambos cantavam.

Delfos, rouxinol, paraíso;

eram os nomes perfeitamente intercambiáveis?


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Nas horas altas da tua insónia, deixávamos que a aragem nos inflasse as vestes e a voz. Nem é que à noite reconhecesse uma substância, sequer um carácter misturável ao sangue, capaz de infundir as células de uma cedência, treinar o corpo no recomeço. Terei apenas acreditado que, confrontado com a beleza dos astros, quisesses desempenhá-los, cumprir-lhes o eco, servir-lhes de sombra; precipitasses então mecanicamente, sem sequer percebê-lo, no desejo retrógrado, na recomposição do paraíso — este jardim por esta mãe, por este leite, por este mar.


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Entre todos os movimentos este… entre todos os movimentos…

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Que os sons do paraíso não te deixassem dormir em Platrès constituía o lamento mais luxuoso de que éramos capazes. Outorgávamo-nos uma sobriedade — o paraíso estrilhava. Simulávamos a autonomia do nosso sono; a fundação da insónia, não na carência, mas no excesso. Dispensávamos o amparo milenar, as cúpulas, os muros, a selecção, mordíamos essas voluntariosas mãos. Dizíamos a Natureza como as uvas: verde: nem sequer servindo o embalo. Assim, desdenhando do seu zelo, eludíamos a nossa condição de presa. Mas não apenas, que quanto mais empenhadamente reelaborávamos o paraíso, mais nos convencíamos — erroneamente? — do nosso indefensável privilégio. A culpa, reuníamo-la numa maçã. E mesmo escamoteando, deturpando-lhe o sentido em narrativas que a sopesassem por baixo, sabíamos que o problema nunca estivera além dela. Sempre contido. Era um problema de fome.

Vendo bem, vínhamos nascendo facilitados: o domínio das mãos e do fogo, as maçãs pendendo sobre as nossas cabeças, ao alcance de um gesto cansado de mão.

O poder da grande fauna cedia sob as nossas lanças. Matávamos sem que para isso estivéssemos naturalmente munidos. Tínhamos sabotado a Natureza: éramos trânsfugas da circunscrição às capacidades inatas. Enfim só poderia caber-nos qualquer sorte de auto-inflicção: a guerra, e ainda antes a noite, para a reconquista velada da nossa paridade com os restantes animais. Estes modos de, por nossas mãos, vingarmos a própria audácia.

Reconhecendo-nos traidores, sentindo-nos ainda presas, alternada ou cumulativamente, sobrava-nos, de qualquer modo, por culpa ou medo, a insónia. Só ela nos dava a exacta medida da nossa basculação no espectro da predação. Entre presa e predador, o modo como transbordávamos, de um no outro, como nos equilibrávamos tão raramente adormecidos.

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Os rouxinóis, sentias desmerecê-los, em Platrès.
Em Platrès, desejaste desprezá-los.


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Entre um e outro, entre um e outro,
nós, como a maré. Aspirámos ao corpo estático, às águas paradas; depois, desesperadamente, a uma terceira via. As raízes de obstáculos como este aprofundam — absurdamente?

De joelhos desejámos desfazer-nos da nossa fome, por um lado, da condição de ser corpo que sacia, por outro, sem que desaguássemos na morte. Era para vivermos desmesuradamente além do poder ou da submissão. Era necessário reapropriar a insónia, expor-lhe as pálpebras escancaradas, nem sequer desejar vencê-la.

Pensámos poder ocupar o lugar do sonho, da frase.

Pensámos poder extraí-lo do corpo do sono como um órgão siderante, deixá-lo invadir inteiramente o espaço da vigília.


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«Vigiai» — desceu três vezes para o repetir, cada vez em vez em vão.

Apenas ele, a sós, poderia naquela noite desempenhar a renúncia; nunca um sonho pôde ser assistido. A vigília era então a insónia trabalhada. Dispensava o sono como quem principiasse a dispensar a própria natureza. O corpo deixava de ser o incontendível, como o são os dias, as estações, os elementos, os astros. Contendê-lo valia enfim algo que não a morte. Podíamos fabulosamente contra ele.

O sangue, misturado ao suor, tornava-se matéria excrescente; o corpo escaldante arrefecia à temperatura do esquecimento. As águas do Hipno, digo, as águas do Lete — que entre um e outro, entre hipnose e letargia, apenas a sobreposição —, nunca o atingiram. Cristo suava tal como, rente ao fim, serpentearia. O esquecimento que submetia os três apóstolos passou por ele como a velha luz pelo velho mar,

evaporou à superfície da pele como uma água comum, cândida, prévia.

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A aurora ergueu-se entre as oliveiras. Estava selado o ensaio cabal da sobrenaturalidade. Quem poderia morrer sem sangue e sono?

II.

Os teus dedos apontavam o diadema de Ariadne. Um dia, os artefactos da nossa conversão em deuses ascenderiam também, engastar-se-iam, sem esforço, na trama do éter. A idolatria ser-nos-ia devida. Era preciso adormecer.
Ouve: nunca quisemos a cúpula sobre nós; derrubada, o muro deduzido aos seus destroços. Nunca isso. Era que nós mesmos culminássemos.
Por força teríamos de reinvestir a margem deixada pela nossa degeneração em humano — o espaço da animalidade devinda, por nossa deserção, divindade. Teríamos de construir, a partir da nossa falência, da subanimalidade, a narrativa da nossa sobre-humanidade. Quando a mão recorresse na manifestação das nossas venerações, vê-la-íamos, refeita do interior da gruta, avançar sobre a superfície da noite. Como antes, de pincel empunhado, seguíamos o relevo da rocha, surpreendendo-lhe o volume esboçado dos animais, seguiríamos agora as estrelas. Ler-nos-íamos finalmente, siderais. Ultrapassada essa outra veneração — que Pasífae, amaldiçoada ou louca, era em todo o caso absurda —, ditaríamos ao espaço da divindade a nossa manufactura: os relógios, os telescópios, as bússolas, a parafernália fabulosa. Sem embaraço. Ainda podíamos convencer-nos disto, que o céu nos pressentia,
havia tanto.

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O reflexo da Lua arqueia na margem das tuas íris à medida que cai sobre o Oeste — alguém te afasta do sono, quer fixar os olhos nos teus,
ver contrariarem-se os globos que aceleram e ardem e se vão, na noite.
Quando já do mesmo negro as tuas íris e pupilas se diluem no firmamento, como as azeitonas selvagens que mordias junto à costa,
és Endímion. E Hipno está a amar-te.

III.

Se ao menos a atmosfera se dissipasse para jurar-nos a noite sempiterna.
Um dia dissemos que o Sol era o dia, esquecidos dos rios evaporados, da trepidação dos vulcões regurgitando, dos subprodutos da vida.

Ainda era noite e os pássaros principiavam a cantar.
Invejámos os pés pousados na areia cortante.

Imagem: La Bohémienne endormi, Henri Rousseau, 1897

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