fotografia: João Santana Lopes

O Sex Appeal do Inorgânico

«Aqueles que abrem mão da liberdade essencial por um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade nem segurança.»

Benjamin Franklin

Carlos Amaral Dias, há muitos anos, talvez em 1987, disse-me que era imprescindível ler A Ave do Arremedo (Mockingbird no original). Assim fiz.

Encontrei-me com um romance de ficção científica do escritor americano Walter Tevis, editado pela Editora Caminho em 1987.

livro começa com Spofforth, o andróidereitor da Universidade de Nova Iorque, a tentar o suicídio; tem séculos de vida, mas anseia pela morte.

Spofforth traz para a universidade um professor humano, Paul Bentley. Bentley é autodidacta, tendo aprendido a ler a partir de um filme com palavras que combinam com as de uma cartilha infantil. Spofforth desconfia de Bentley pelo seu conhecimento da leitura e por ele querer ensiná-la aos seus alunos. Spofforth aproveita o seu conhecimento, dando-lhe a tarefa de decodificar os títulos escritos em filmes mudos antigos.

Numa visita ao jardim zoológico, Bentley conhece Mary Lou, pela qual se apaixona, desenvolvendo cada vez mais as possibilidades de leitura e escrita, até que são separados por Spofforth.

A partir daí, Bentley inicia o seu caminho na descoberta de si mesmo e na busca de voltar a viver com Mary Lou.

Que acontece quando o humano e a andróide se apaixonam?

Sex Appeal do Inorgânico?

Resenhando a edição de 1999, James Sallis declarou que «Mockingbird faz ruir todas as outras formas de perversões autodestrutivas e indomáveis da humanidade, crueldade e gentileza, na sua narrativa de humor negro do desejo de morte de um robô».

Pergunto-me se anuncia uma outra forma de consciência da nossa condição de ciborgue?, sendo o ciborgue uma imagem condensada tanto de imaginação quanto de realidade material.

Mario Perniola, na sua obra O Sex Appeal do Inorgânico, pretende pensar na sensibilidade e na experiência humana, na interface orgânico e inorgânico.

O sex appeal do inorgânico é a única forma de escaparmos a uma nova animalidade/humanidade, pois permite-nos outro modo de nos relacionarmos com os objectos, explorando temas como tecnologia, virtualidade, arte e sexualidade.

As referências a pensadores que encontramos no seu texto, como Walter Benjamin, Kant, Heidegger, Freud, Lacan, António Damásio e Paul Virilio, pretendem convocar-nos para um sentir neutro e impessoal, através da interdisciplinaridade, que se constituiria como a centralidade do humano.

Talvez Freud e a sua Psicanálise, felizmente, ignorem o caminho da intersubjectividade humana, como um sentir neutro e impessoal. O Sê quem És é transformado na coisificação da subjectividade humana. O mandamento é entrega-te ao ciborgue com feelings, pois deixarás de ter angústias perante o estranho, o narcisismo das pequenas diferenças terá desaparecido, a «coisa» em si te protegerá. Não decerto ao Bentley e à Mary Lou.

Anunciada a crise da subjectividade cartesiana, aproxima-se Perniola de Nietzsche e das reflexões sobre a dissolução do eu. Um sentir descentrado, impessoal e neutro oferece um novo modo de perceber e interagir com a realidade técnica contemporânea, pretendendo transformar-se numa forma adequada de pensar no presente e no futuro da experiência humana na era digital.

Assim, a desconstrução do sujeito cartesiano e a defesa de um «sentir impessoal», no qual a experiência humana se mistura ao inorgânico, gera um «ciborgue filosófico-sexual».  

Na sua conexão com o contemporâneo, pretende analisar vários fenómenos como cibersexo, psicoses, arte pós-humana e tecnologias virtuais, mostrando como o inorgânico não é um «outro» externo, mas parte constitutiva da experiência sensível.

Sendo a Psicanálise um discurso humanista sobre o Ser Humano, quer na sua vertente clínica, quer na sua vertente teórica, o que Perniola propõe como uma subjectividade híbrida, marcada por interfaces orgânico-inorgânicos, é um debate sobre pós-humanismo.  

Suponho que muitas das crises éticas contemporâneas se filiam neste pós-humanismo, em que se diluem as fronteiras entre humano/máquina ― e está anunciada a sociedade dos avatares.

Segundo Richard Wagner, na sua tetralogia O Anel de Nibelungo, até os Deuses se tornaram humanos.

A Mary Lou e o Bentley só poderiam sobreviver se ambos se tornassem humanos.

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