Existe uma coisa que me assusta, porque persegue e termina em tortura. Uma coisa que me habita, que te habita e que nos habita. É cristalina, nos outros, e se esgueira no nevoeiro, quando somos nós a proferi-la. Sim, porque é uma coisa que adormece durante décadas no subterrâneo, mas quando acorda, parece uma chuva leve, e se não para de chover, arrasa todas as aldeias e as cidades com o seu lodo bafiento, com as suas pedras violentas. 

Além da natureza, só esta coisa muda os mapas.

Quando a coisa dorme, é uma vergonha de natureza repugnante, e a sua tendência cíclica só a conhecem aqueles que sabem da sua história ou que a viveram em carne própria. 

Desperta timidamente, corporiza-se no mais doente e megalómano dos seres. E é este, como um encantador de serpentes, quem faz da desventura uma ventura, transformando o esgoto num novo perfume… mas a coisa não cheira bem nunca. A coisa incha dentro dele, e começa a transformação: ele e a coisa parecem a mesma coisa.  De facto, o encantador diz que ele e a coisa são o mesmo. Mas não são. 

A ocasião faz o ladrão. 

A promessa é extraordinária, sendo também extraordinário que alguém acredite numa coisa dessas, nem uma criança muito pequena. 

Mas a coisa tem muito poder, é inebriante. 

Quem tem noção da coisa, tem noção do ridículo e ri-se, não sabendo ainda que vai chorar.

A coisa pode ser consciente ou inconsciente, aparentemente sã ou totalmente doente. 

O encantador de serpentes sabe bem o que faz, sabe do seu poder. Para as serpentes (com o perdão das serpentes, pois estes seres simbolizam a sabedoria), a coisa age como cimento inconsciente. 

A primeira regra de oiro da coisa é aproveitar as águas revoltas do caos. Esclareço, a coisa não é o caos, a coisa supostamente vai melhorar o caos. Para tal, a primeira condição é matar a verdade: “O caos não é nosso, a culpa é do outro”.

A coisa transforma-se em música, as serpentes dançam sobre as fogueiras dos livros, manuscritos ou papiros, dançam freneticamente. Sem saber que os seus ossos também serão carvão: assim é desde o início do tempo da desumanidade. Sejam bruxas, frades, infiéis, pecadores, judeus, muçulmanos, animistas, cristãos, comunistas, ateus, inimigos do povo, escuros, claros, pobres, ricos, amigos ou inimigos, a coisa vem sempre bater-nos à porta. 

A coisa sobre sempre à cabeça, seja para voltar ao esplendor de um passado que nunca existiu, ou seja para cumprir uma utopia impossível. 

Qualquer coisa serve para quem se afoga na desesperança, a espera infinita. 

Uma vez extirpado o mal que reside, sempre, nos outros, o futuro será glorioso! 

Então, a coisa incha de tal modo que já não há espaço livre, tudo é invadido por ela, cortando os fios invisíveis que unem o bem comum. 

Ou se está com a coisa ou não se está com a coisa: diz-se que a coisa divide ao meio as famílias, os amigos, as freguesias, os distritos, as regiões, os estados. 

A coisa aproveita-se do caos para dividir em dois, mas nem sempre.

O encantador é festejado, é o rei, imperador, faraó, presidente, comandante em chefe, benfeitor… e as serpentes ainda dançam, não sabendo ainda que são os ratos de Hamelin. Começa a promessa do paraíso… que terminará no inferno. 

A coisa ganha tal dimensão que ficam todos doentes de fervor ou de temor. A amabilidade torna-se cruel e a violência lei.

A liberdade, essa, parte para muito longe, acossada pela nova polícia. Começa a purga dos outros, a dos traidores que defendem os outros, de quem não dança na festa: todos em fila, enquanto as serpentes celebram os horrores. Elas estão livres de culpa, são puras e burras. A coisa tornou-se uma coisa palpável, opressiva e omnisciente. Quem vem de fora sente essa coisa esquisita no ar e pensa: estará esta gente toda louca? 

Neste estágio, a coisa já entranhou a mentira na pança das serpentes, gordas de engolir farsas, embustes, manobras, porém… há menos pão na mesa. 

O encantador encarna a suposta vontade de todos e tem insónias porque sabe que o seu poder é monstruoso, mentiroso e odioso. Por isso dorme com um olho aberto e outro fechado, tem pesadelos e o sabor do poder fá-lo ficar louco. 

Na casa do poder, começa a desenhar-se no ar um leve terror e nem o sangue nem a lealdade deixam alguém a salvo da coisa, que continua a crescer, sem nunca se dar por vencida.

O encantador, as serpentes, o poder, a terra e a coisa, são agora a mesma coisa… Mas algumas serpentes começam a perceber, muito devagar e tarde demais, que estão gordas de ar, de nada… e quase nada podem fazer porque não existe espaço livre da coisa. 

De nada lhes vale a revolta ou a euforia, esses tempos passaram. 

Tudo se torna escuro e cheio de cinzas, cinzas do um sonho que a realidade faz arder na carne e na alma: fome e guerra, guerra e fome, a conjunção constante em que a coisa termina.

Quando a coisa chegar e começar a crescer, é imprescindível saber que, desta vez, não vai ser diferente. 

Quando vires as barbas do teu vizinho a arder, põe as tuas de molho e vai ajudar o teu vizinho. 

Não há soluções mágicas, era uma coisa que a minha avó costumava dizer.

Fotografia: João Santana Lopes

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