Após o golpe de Estado em 1964, o Brasil passou a viver tempos especialmente difíceis. Uma dessa ocasiões particulares deu-se em 1968 com o Ato Institucional nº 5. Promulgado pelo governo militar primava pela aplicação de restrições, nomeadamente no seio do movimento artístico com a censura prévia de música, cinema, teatro e televisão, por subversão moral ou dos bons costumes. 

Nessa ocasião, Gilberto Gil encontrava-se fortemente envolvido, com Caetano Veloso, na fundação e desenvolvimento do movimento Tropicalista, tido como um forte movimento cultural brasileiro que veio a romper com a anterior arte militante ligada à ditadura implementada. O seu envolvimento nesse movimento decretou a sua prisão. Caetano e Gil são presos e posteriormente enviados para o exílio. É antes da sua partida que Gilberto Gil compõe a célebre música Aquele Abraço, transformando-a num hino de despedida e símbolo da luta contra a ditadura militar. Composta depois do músico deixar a prisão de Realengo, Aquele Abraço fala do que Gil deixa para trás, do seu Brasil transformado e aprisionado. Fala de bairros e clubes de futebol, escolas de samba e figuras que fazem parte da vida carioca da época. Alguns acreditam que o abraço da canção encontrou inspiração no abraço redentor, figura maior do Rio. Apesar de ser uma canção de despedida, a música veio também a tornar-se num hino da liberdade.

O abraço, expressão íntima de contacto humano, foi proscrito dos encontros. O quotidiano tornou-se asséptico e as emoções passaram a ter como únicas interlocutoras a voz e o olhar. A pele, orgão primordial da fundação do nosso psiquismo, foi relegada para o campo do perigo. A barreira de contacto protectora não nos protege mais, em vez disso tornou-se ameaçadora e, por isso, censurável. Como passámos então a conviver com a dura suspensão de contactos humanos tão essenciais?

No consultório adiaram-se os contactos físicos. Aboliu-se o aperto de mão habitual que regularizava e marcava as boas vindas e as despedidas, o início e o fim, num pacto ritualizado. Aumentou-se o espaço físico que mediava o par analítico, impondo um distanciamento que passou a representar o contrário da proximidade, promotora da intimidade vivida nesse campo. Noutros ambientes o distanciamento físico tornou-se possivelmente devastador. Soubemos que em algumas creches foi pedido a pequenas crianças que entendessem e passassem a obedecer a novas regras de comportamento, pedindo-lhes que não se tocassem entre si. Nas escolas, alunos foram privados da proximidade relacional, o contacto físico foi banido e substituído pelo ensino à distância. Recreios inteiros ficaram desertos das relações físicas edificantes necessárias ao bom desenvolvimento de qualquer criança ou jovem. Nos hospitais, onde se cuida manuseando o corpo, palpando e sentindo pelo tacto, esse mesmo contacto foi suspenso. Soubemos há dias, pela directora do serviço de neonatologia de um Hospital, que bebés prematuros, além de enfrentarem a dureza da batalha do início de vida, são tocados pelos técnicos de saúde que, para os protegerem, envergam batas e luvas, anulando o toque de pele com pele. Esther Bick, famosa pelos estudos psicanalíticos sobre a importância da pele no desenvolvimento psíquico precoce, ficaria espantada com tal realidade. Em muitos locais, defendendo a saúde pública, famílias foram privadas de tocar pela última vez o seu parente próximo, suspendendo uma parte do processo de luto.

Tolerando tudo isto, engolindo a saudade dos verdadeiros e palpáveis reencontros, teremos de suster a vontade primária de nos tocarmos, abraçando-nos, confortando-nos ou selando despedidas.

Até que tudo volte a uma certa normalidade, a todos, Aquele Abraço.

Imagem: Gustav Klimt, Mãe e Filho (1905), Óleo sobre tela

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