A alma da locomotiva do Keaton, um colossal, selvagem e fumegante motor a vapor, é o caos puro encarnado que avança sem qualquer respeito pela ordem, segurança ou bom senso. Tem um único objectivo: libertar-se de uma tensão que o pode fazer rebentar a qualquer momento. A estrutura grita como se fosse metal a ser arrancado dos ossos da terra, cospe fogo pelos pulmões de ferro e avança com a fúria de uma fera destravada. Não é uma máquina de transporte; é uma força desenfreada com uma potência ingovernável. Enquanto o comboio convulsiona de energia desregrada, Keaton agarra-se a ele, comanda-o. Nessa dança em que o caos e a ordem se entrelaçam, o homem e o motor tornam-se uma força imparável. Dessa amálgama emerge a ideia de motor animæ – motor de alma – a força que move cada um de nós.
As vicissitudes da força selvagem do motor da alma – da pulsão, uma espécie de comboio ingovernável da psique à maneira de Keaton – estão no centro da teoria estrutural de Freud. Nesta segunda teoria do funcionamento mental, o modelo paradigmático deixa de ser o sonho com os seus processos e conteúdos representacionais e o foco passa a concentrar-se na natureza e no funcionamento das pulsões. Simultaneamente, surgem os contornos do inconsciente não reprimido. Deixa-se de focar em representações para pensar em forças psíquicas ainda não vinculadas a símbolos e, consequentemente, não representáveis mentalmente.
A produção de representações — como Freud designou as entidades psíquicas que constituem a base para a formação de palavras e pensamentos — requer um processo transformacional. Levine cruzando linhas de pensamento de Bion, Winnicott e Green, introduz o conceito de imperativo representacional, uma pressão inerente à actividade psíquica para formar representações e organizá-las em narrativas coerentes. O imperativo representacional tem como principal tarefa conectar a energia psíquica crua e indomada do inconsciente não reprimido a símbolos. Na medida em que a função simbólica do aparelho psíquico é capacitada para criar representações infundidas com vitalidade e sentido, emergem, gradualmente, o pensamento e os processos de regulação psíquica.
A consideração da coexistência de uma área de conteúdos reprimidos (i.e., o inconsciente estruturado) e de uma área não estruturada do inconsciente tem implicações sobre a teoria e sobre a técnica. Na psicanálise contemporânea, a atitude analítica clássica complexifica-se. No modelo da intervenção original, baseada na neurose, o psicanalista utiliza a escuta e a inferência para desvendar conteúdos ocultos. Esse modelo implica que existem representações — ainda que recalcadas. E se elas não existirem, ou forem demasiado fracas, porque a própria capacidade de pensar está comprometida?
Nestes casos, não ajuda assumir o papel de arqueólogo da mente, à procura de memórias, pensamentos, sentimentos, fantasias e desejos recalcados, porque eles podem não estar formados. Consequentemente, para certos pacientes — ou para certos momentos da consulta em que se revelam processos primitivos da mente — as técnicas tradicionais, como, por exemplo, a associação livre, não funcionam. A organização de conteúdos mentais é inexistente ou demasiado fraca, o que dificulta a sua expressão em palavras. Verificamos isso quando a fala é predominantemente evacuativa, fragmentada e desprovida de sentimento ou de sentido. Os estados emocionais são frequentemente intensos e amorfos. O self e o objecto apresentam-se fragmentados, inconstantes e fracamente definidos. Tudo isto junto gera a sensação de estarmos perante pressões internas não estruturadas, no sentido em que ainda não se encontram associadas a palavras.
Nesses casos, ou nesses momentos, é necessário que o trabalho de desvendar o que está oculto à consciência seja substituído por um trabalho transformacional que crie ou reforce uma estrutura psicológica capaz de domar e transformar a locomotiva pulsional. Trata-se de assistir o paciente no desenvolvimento dos instrumentos de pensamento e, como dizia Bion, “making the best of a bad job”.
Imagem: Motor motor Animæ – Fonte desconhecida



