Era de uma vez um casal de velhadas, que morava num vilarejo esquecido com as suas duas filhinhas. A mais velha era moça trabalhadeira e conformada, passando os dias a esfregar os costados do pai, raspando-os de peles secas e amarelentas, ou então, a empatorrar de papas e gordura a desdentada mãe. Por isso era muito estimada pelos velhos, ao contrário da irmã mais nova, rapariga aluada e pachorrenta, que gastava a vida mirando tetos e paredes, a imaginar-se a servir rica gente, e ajuntando muito e bom dinheirinho.

«Pois então, vai», disse-lhe certo dia o patriarca, já farto do paleio da pequena, «e nos dias de abundância lembra-te cá da gente.»

No mesmo instante largou de casa a menina, e sem plano que houvesse, deitou à sorte por essas brenhas. Quando caiu a noite, chegou-se junto a um poço para molhar um bocado de pão duro para a ceia, e foi dar com três gralhas muito aflitas, amarradas num engenho.

«Ajuda-nos, querida menina, que nós te ajudaremos de volta.»

Primeiro fez a pequena ouvidos moucos, mas depois, como estas não se calassem, lá soltou os passarocos da trapa. Beijaram-lhe os lábios à vez, e perguntaram depois o que poderiam fazer por ela.

«Procuro casa rica onde servir e ganhar muito dinheirinho», disse a menina, esfregando os dedinhos um no outro.

«Conheço uma casa assim», disse uma das gralhas, «vem, que te mostro o caminho.»

A menina foi atrás, vendo a gralha esvoaçar em bonitas piruetas, até darem com um pedregulho muito pesadão. Piou-lhe a outra:

«Arreda, laje, que te parto!»

E sem que lhe tocassem, o calhau se desviou, abrindo passagem e um ror de escadas para o submundo. Desceram, e pelas sombras caminharam um dia inteiro. Quando por fim saíram, deram num largo prado, donde se avistava uma casinha branca, toda caiada e muito modesta. Logo se arreliou a garota, cuidando ter feito negócio ruim, e enxotou a gralha espertalhona. Não tardou a topar a dona da casa, uma pequenina mulher, que vinha fazendo recolha de feno num grandíssimo molho que trazia à moleira. Quando esta se voltou, não se conteve a menina:

«Tão velha és!»
«Tanto quanto o castanheiro que além vês.»

Mas como alternativa lhe faltasse, acabou por oferecer os seus préstimos à enrugada, que a convidou a entrar. E mal meteram pé dentro, descobriu-se que a casinha branca não era senão fingimento, ocultando um prédio de finura, posto por artes de feitiçaria para ludibriar cobiçosos e olheiros. Até o diabo da velha, uma vez lá dentro, se tornou numa bela e fresca feiticeira.

«Esta casa tem sete salas. Durante um ano e um dia hás de limpar seis delas, mas nunca deverás abrir a sétima.»

Deu-lhe todas as chaves, e enfiou-lhe ainda pelo pescoço abaixo um fio de ouro com a chave da porta proibida. A menina então trabalhou a bom trabalhar, que as assoalhadas eram de muita grandeza e bem aviadas de mobílias e tapetes. Havia que dar lustre nos belíssimos móveis, encerar os soalhos, sacudir almofadões e carpetes, e desempoeirar a grossa coleção de cacarecos de porcelana fina, obra de muitas centenas, o que era coisa interminável e de moer juízos. E assim foi, derretendo os seus dias a cuidar do casarão, sempre em grande enfado e maldizendo dos seus sonhos de faxineira. Mas sempre que passava pela porta da sétima sala, enchia-se de tremores e tentações. Uma noite esteve por um triz, já com a chavinha de ouro na fechadura, quando uma das amigas gralhas meteu pela janela em grande lida, piando: 

«Tento, menina!»

Assim se passou um ano e um dia. Então a feiticeira chamou-a e disse:

«Cumpriste o que te pedi, agora serás recompensada.»

Levou a moça à sétima sala, e com a chave de ouro que a outra mantinha ao pescoço, abriu a misteriosa porta. Tudo se revestia de ouro, como tanto não havia em outra parte da esfera. Disse-lhe a bruxa:

«Roda os teus noviços lombos pelo chão: o que se te agarrar é teu.»

Assim fez, e quando saiu da casa levava-se toda empinocada de ouros e preciosidades. Procurou depois tornar ao seu vilarejo, no entanto, não havia forma de dar com o túnel que usara, e já se começava a inquietar quando apareceu a terceira gralha.

«O caminho agora é outro. Vem, que to mostro.»

Com isto meteram-se a uns arbustos muito densos e espinhosos, que a gralha abriu por sorte de um condão que sabia. Depois de um dia inteiro a traçar a sarça, foram dar bem na frente do vilarejo da moça, e a gralha despediu-se. Quando as gentes a viram tornar bem salutar e toda decorada de riquezas, deitaram aos velhos pais dizendo:

«A vossa filha tornou, e vem coberta de ouro!»

Com quanta alegria a receberam, se enchendo de orgulho, e durante dias se festejou na vila a boa fortuna. Mas eis que desperta na irmã mais velha, sempre tão aplicada no conforto dos velhadas, agora se vendo em segunda, a terrível flama da ciumeira. Escutando mil vezes o relato da irmã, resolveu seguir-lhe os passos.

Como a primeira, meteu pela estrada até dar com o mesmíssimo poço e onde acabou ceando. Novamente ali estavam as três gralhas, que arranjaram de se meter pela segunda vez na mesma armadilha.

«Ajuda-nos, querida menina, que nós te ajudaremos de volta.»

Isso sim, pensou a irmã mais velha, que chuchando o seu pão duro, logo imaginou os passarocos tostados no borralho com banha e umas folhinhas de alecrim. Assim fez, acompanhando o rancho de uma mão cheia de castanhas e meia maçã que trazia, e ali dormiu regalada. Calhava de guardar na memória o caminho do famoso pedregulho e da passagem que escondia. Levantá-lo é que foi o cabo dos trabalhos, que pelo peso e falta de ajuda do passarolo, exigiu da moça muito empenho de braços. Mas lá conseguiu, e depois de um dia caminhando nas escurezas, foi dar com a casinha branca. A feiticeira repetiu:

«Um ano e um dia hás de limpar as seis salas, mas nunca abrir a sétima.»

Mas nessa mesma noite a gananciosa não resistiu e meteu logo a profanar a porta proibida. Ah!, mas tudo era horror. Nada de tesouros, apenas negrume e bolores, caldeirões de fogo e terríveis criaturas. Agarraram-na e maltrataram-na, por pouco não lhe dando fim definitivo. Moribunda, conseguiu dar à sola, mas sem auxílio das gralhas não achara o atalho pelo sarçal, que a levaria direitinha à vila. Ao invés, precisou atravessar esses caminhos de Cristo por muitos meses, mendigando pitança aqui e além, até que passado um ano e um dia, chegou enfim. Começaram as gentes por não reconhecer tão triste figura, muito maculada e andrajosa, mas mais de perto, se convenceram ser a filha dos velhadas. E logo lhes foram dizer:

«A vossa filha tornou, e vem coberta de sangue!»

Acabou por encomendar-se a Deus, pouco depois, sucumbindo dos muitos males e trabalhos passados. Nem por isso deixaram os velhos de viver galharda e ricamente, à conta da filhinha mais nova, até ao fim dos seus dias.

Fotografia: Uma mulher colhendo feno em Cogne, Itália, 1959. Pepe Merisio

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