Superfície de Inscrição
Há uma superfície que nos antecede e que nos ultrapassa. A pele é, desde sempre, um lugar de
passagem, ao mesmo tempo que se apresenta como fronteira porosa entre o que se guarda e o que se
oferece, nela inscrevem-se sinais, memórias, vestígios do tempo e a própria relação com o mundo.
Nenhum corpo se dá inteiro. Há sempre o intervalo entre o que toca e o que é tocado. A pele guarda
este intervalo. O ato de coçar, de raspar, de insistir sobre a matéria evoca uma tentativa de
revelação, não para descobrir um núcleo estável, mas para aceitar a estranheza que vive no
interstício, entre o visível e o velado.
Como sugere Jean-Luc Nancy, a pele é uma “superfície sensível do ser”, um lugar onde o toque
acontece e o sentido se forma. Também Didier Anzieu, ao propor o conceito de “Eu-Pele”, nos
lembra que é através da pele que o sujeito se constitui: sendo uma fronteira simbólica entre o
psíquico e o somático. É neste campo que estas pinturas se movem, num território onde o corpo e a
imagem se entrelaçam.
Não há figura, fica apenas um “corpo”, uma fisicalidade latente, marcada na pintura pela
persistência do gesto e pela escolha de materiais que acumulam, desgastam e resistem. Mais do que
representar, estas pinturas propõem uma escuta silenciosa da matéria. Ao tratar a pele como lugar de
inscrição e não apenas de aparência, esta torna-se arquivo, mas um arquivo instável, inscreve-se
nela aquilo que não se diz: um gesto repetido, uma ausência, uma vontade de permanência.
Trata-se apenas de repetir o gesto do tempo.
Fotografias de duas Obras de Rafaela Francisco Ferreira.

“sem título”, 2019.
Técnica mista sobre pano tela, 180x180cm

“sem título”, 2022.
Técnica mista sobre pano tela, 160x160cm