MOTOR OU CODA
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Por mais que tentasse, jamais seria capaz de descrever o princípio deste texto. Resta-me efabular, caminhar passo a passo entre mundos possíveis, descrever uma linha recta e depois abandonar-lhe o rastro, mudar de direcção, ensaiar uma curva, uma pequena lomba no meio da estrada ou uma cova funda, quiçá, um abrigo.
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Quando tudo começou, eu não devia ter mais de três ou quatro anos e cinco ou seis dúvidas de algibeira — souvenirs dos dias que antecedem as primeiras palavras, e o derradeiro instinto que nos conduz à ínvia certeza de caminhar pé ante pé sem inquirir a calçada que percorremos. Lembro-me de estar sentado na soleira da casa dos meus avós a decorar matrículas, marcas de automóveis, mas sobretudo pequenos ruídos: a voz de uma lixeira, a batida seca de uma bola de basquetebol, o pisotear apressado da farmacêutica atrasada depois de um almoço secreto com o vizinho do terceiro esquerdo, a estridência dos meus dentes de leite enquanto comia camarões, os ásperos soluços das persianas enferrujadas pela manhã ou antes de ir dormir e, no centro de tudo isto, o motor do carro da minha mãe.
Era um Opel Corsa branco baço de dois mil. Um carro insignificante, para lá de banal à vista dos demais, mas que se tornava a linha que unia o firmamento da minha infância.
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Sim, já sei, por esta altura o leitor mais preparado já deve estar a pensar: o motor do carro é um símbolo. Ou então: o motor funciona por metonímia, a este propósito escreveu Lacan… Ilude-se, como é natural. Nada mais errado. Aquilo que me interessava nesse breve e grave rumor, áspero como a serrilha, era a sua insubstituibilidade. Poderíamos substituir todas as peças do carro, mas jamais a sua qualidade primordial: o seu je ne sais quois, agora sim, citando o velho parisiense de lacinho e fato aprumado.
Estou ciente de que esta opinião é pouco analítica, não está assente em nenhum estudo, e é até bem possível que vá contra o tão célebre ‘senso comum’. Convém lembrar, em abono da verdade, que a minha mãe até já trocou de carro, passeando-se felicíssima pelas ruas de Saint Tropez com um Mercedes azul cromado de dois mil e dezoito. Está feliz com a sua tremenda novidade. E eu fico genuinamente contente com o facto de a saber alegre e descapotável, apesar de não atribuir a menor importância à compra de um carro e, aproveito para confessar aqui que ninguém nos espia, até achar algo repugnante a fauna que ocupa as margens da Riviera Francesa.
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Entretanto, sem grande originalidade ou proeza de espírito, o tempo passou e eu envelheci. Não percebo nada de carros e sempre me recusei a tirar a carta. Sou um amante, isso sim, de comboios. Se pudesse, vivia eternamente num transiberiano. Ou, sendo mais realista, no Internacional que une Nine à galega cidade de Álvaro Cunqueiro:
ó tascas das calles de Vigo,
se vistes Martim, meu amigo,
pede que me pague em Ribeiro
e Albariño o amor que deixei
sem vagar, nem livro,
perdido nas rias a boiar!
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Espero que o povo luso me perdoe a falta de talento para a epopeia. Onde é que eu ia? Já sei. Gostava de poder passar todos os dias pela Ponte Eiffel, contemplar as gruas dos Estaleiros Navais na foz do rio Lima e filmar tudo com uma lente neo-realista, desde o rio até à medíocre imitação da Catedral da Sacre Coeur no topo do planalto e a avenida que rasga o ventre do centro histórico da cidade. Mas jamais sair. Não, isso nunca.
O ideal seria permanecer sub species aeternitatis dentro do comboio, dentro de uma dessas antigas carruagens cujo rumor produz um redondo calor nos assentos, e os passageiros invariavelmente adormecem, como as crianças sentadas nos bancos traseiros, entregues à condução lenta e segura dos progenitores que dão voltas e voltas à cidade na esperança de que elas adormeçam. Confesso que tenho saudades de adormecer no embalo do carro do meu pai, quando arrancava pela estrada nacional fora, sempre a bater nos buracos deixados pela incompetência municipal. Gostava de ter coragem de ligar ao meu pai e pedir-lhe que me levasse até casa dos meus avós, em Perre, só para poder adormecer na viagem de regresso. Mas não posso, não consigo.
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Disperso. Não era minha intenção falar de nenhuma forma de conforto ou segurança. O branco e leve rumor do motor do velho carro da minha mãe assemelhava-se mais aos castanheiros de Bragança, plantados com o intuito de sacar dinheiro aos fundos da União Europeia, ou aos sobreiros alentejanos — árvores que me são estranhas, por completo, à semelhança, aliás, de tudo aquilo que se passa a sul do Sado ou mesmo do Mondego. O que não quer dizer que nunca tenha sido feliz entre o Estádio Municipal de Coimbra e o famigerado Estádio do Algarve.
Mas a felicidade não é um assunto literário, e nem sequer consigo entender por que motivo teimo em escrever tantas vezes essa palavra insólita e vazia. A verdade é que não sei como abordar a questão central deste texto, o princípio de todas as minhas motivações, a mudança engatada na servidão dos meus dias. Não sou capaz de referir com a devida fidelidade esse mecânico marulhar, espécie de pausa do sentido, que me mantinha à espera do regresso da minha mãe. Porque não era a minha mãe que eu esperava necessariamente, mas tão só a mínima e dissonante melodia que ampliava os meus dias, numa época em que ainda estava muito longe de adivinhar quem fossem Berg ou Cage, por mais que a casa dos meus avós ficasse paredes meias com o Conservatório de Música. Talvez esperasse o regresso da ordem, o restabelecimento de uma cosmogonia perdida, à imagem dos primeiros modernistas. Não sei.
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Uma coisa é certa: nunca mais deixei de conseguir adivinhar a chegada de um Opel Corsa, produzido no princípio deste milénio — completamente distinto do barulho desajeitadamente moderno e impessoal dos Opel Corsa produzidos a partir da década de dez. Certa vez, numa pequena localidade a norte de Bromsgrove, ouvi aquilo que me parecia ser o ronronar do antigo bólide da minha mãe. Não pude deixar de ficar espantado, já que o carro acabara de ser vendido a um rapaz de Castelo Branco que nunca havia saído de Portugal. Devo ainda frisar que sempre soube distinguir com exactidão o som produzido pelo motor do Opel Corsa da minha mãe dos restantes barulhitos produzidos pelos Opel Corsas seus contemporâneos. Não faltam por aí coisas e pessoas muito parecidas com aqueles que nós amamos, sem jamais serem capazes de nos confundir em relação à sua verdadeira identidade.
Conseguimos sempre distinguir o original da cópia, por mais que não sejamos capazes de precisar com exactidão as causas ou as origens das nossas paixões e, muito menos, os motivos que nos levam a amá-los tão simplesmente. Tudo isto, aliás, nunca é demais lembrar, veio à baila a propósito do princípio do movimento. Que era supostamente o tema inicial deste texto, já que Aristóteles defende, na sua Metafísica, a existência de uma espécie de ser imortal e imutável que é responsável por todas as alterações e, por conseguinte, por toda a ordem e integridade do mundo sensível. A essa entidade dá-lhe o nome de motor imóvel, mas não faltam por aí teólogos e outros especialistas na matéria sem qualquer pudor em atribuir-lhe o substantivo e toda a substância inerente ao nome de Deus.
Da minha parte, prefiro não arriscar. Nunca fui capaz de nomear a espera, o regresso e, muito menos, a incerteza. Por isso é que prefiro o movimento ao princípio do movimento, e o som produzido pelo motor ao motor em si.
Fotografia: Jorge Rolão Aguiar


