Um homem constrói a sua casa dentro de um limite. Ao longo da vida insiste num determinado número de gestos, e reconhecem-no por isso.
Um homem diz certas palavras que se tornam a língua que o impede de estar só, só podendo dizer, todavia, da sua solidão relevante, revelada.
Um homem qualquer é, solidamente, teimosamente é, por caminhar sobre um limite sem profundidade, nem carapaça: nem côncavo, nem convexo. Difícil é pensar em limite sem considerar imediatamente o seu contrário: o infinito é um esgar, de resto, sem relação. Não é certo ser uma questão de fé, se uma ciência por costurar. A fé, em todo o caso, matéria de rigor. Na mesma medida que o coleccionismo, uma forma de enamoramento. Enamorar-se dos objectos, a própria morte num rito para ninguém, nosso limite-absoluto. Um homem ama um limite de pessoas e isso permite dizê-lo, a esse limite obsidiante de serzinhos, e esperar amar mais e menos, conforme a ferida, ao gosto do gosto. (No lugar de amar podia estar odiar. Eis a propriedade comutativa dos nossos, por natureza dissimulados, limites.) Comove-o, ao homem, os movimentos aferrados de um bicho procurando esconder a sua comida. Um bicho considera todos os predadores possíveis e vive na defensiva. Não se lembra que certas espécies que o rodeiam não se interessam pelos seus mantimentos, seu tesouro. Não o sabe. Fareja, o que é já uma forma de se defender, confiar-se ao chão, modo protestante de guardar o céu. Também aí o bicho, ou o bicho através do olhar do homem, vive confinado segundo um propósito misterioso. Dir-se-ia: específico, relativo a espécie.
É igualmente difícil, ao homem, distinguir o limite do seu avesso, essa fronteira. Se, por exemplo, elegemos uma palavra para dela espremer todos os sentidos possíveis, independentes do dicionário da língua em que falamos, desse exercício resultará uma tese, um experimento, um poema, uma conversa, a língua no seu fundamento de quebra-cabeças, isto é, na sua emenda de cercar muros, sitiar cidades, coçar ossaturas onde as mãos não chegam.
A semântica está para a cartografia, assim como a poesia está para o quotidiano. Em Lisboa, a Rua da Emenda é paralela à Rua das Chagas.
Um homem pensa em coisas e em coisas outras e em outras coisas que o excluem. Para isto não há uma razão, e as proporções respondem só à exactidão provisória de instrumentos alinhados. Soldadinhos de chumbo sem canhão que os demova além de fantasias alheias. Sem demoras, governa a morte sem gerúndios. E nós por joguetes só vendo joguetes, descurando esta e aquela mudez irremediável.
Atenção, há para isto vários grandes motivos. Não sei. Não apetece dizê-los. O cansaço. Mas há, há grandes motivos. Só grandes motivos.
A memória é o mais fecundo perímetro da nossa condição limitada. Nem poderia ser de outra forma. A alternativa seria a indiferenciação, arremedar o abstracto imaginativo, a prova de uma pouca presença numa realidade engalfinhada em tecto baixo: dir-se-ia, uma cadeira com atilhos, cadeira andante, mais viva que o corpo duro, o sorriso extraviado, que nela põe assento.
Onde poderia residir uma redundância, resiste o desejo. E este aloja-se num qualquer recanto. Partida, largada e esta sensação limítrofe de realidade limitada.
Quem duvidou disto, de não amarmos senão o cego coração viajante, que recupera pontualmente a visão só para certificar-se que entrou no comboio certo e depois voltar ao invisível? E recebia, nesse tempo bom, o fogo eterno e alvíssaras de paraíso sem retorno, pura devoção.
Tudo alegre e terrível como a infância — insondável meio de escapar ao próprio velório. Depois disso, nunca as homenagens voltam a prescindir de leilões e o torso muito direito nas fotografias. A imagem apagada.
O que fazemos senão consignar-nos a uma tradição, filiarmo-nos num partido sem extensão precisa? Se for um partido honesto, serão claras as dúvidas, reconhecidas e estimadas. Nem sempre o é.
Duas datas, nascimento e morte, distam um hífen, e algum mau gosto tatuado no bícep direito.
A loucura bem podia ser uma régua abaulada numa mão de calor e a outra a registar o tamanho anterior, mudado.
Estender um ramo de flores, fazer tempo, aperfeiçoar o crime.
Boiando em contradição, arranjamos muitos nomes. Escondemos a comida, hibernamos numa convicção de tesouros. E ninguém afinal sabe o tamanho do buraco. Só que sangra, caga e se mija. Sem grande razão, só algum grau de previsibilidade.
No limite, convenhamos, onde as mãos chegam, ancorar é definitivamente sinónimo de lançar.
Fotografia: Jorge Rolão Aguiar