Limite e configurações do desejo humano.

“A natureza criou-nos com a faculdade de tudo desejar e a impotência de tudo obter.” Nicolau de Maquiavel

A frase de Maquiavel reflete a contradição inerente ao ser humano entre desejo ilimitado e os limites impostos pela realidade. A condição humana reenvia-nos para este conflito entre o que desejamos e o limite do que podemos alcançar. Estamos condenados a desejar e a não alcançar!!! Por outro lado, como lembra Freud, o limite instaura o desejo, e o desejo é o motor do aparelho psíquico.

O que seríamos sem limites?  E o que é viver sem limite?

O filme “As Asas do Desejo” de Wim Wenders, de 1987, convida-nos a mergulhar neste mundo sem limites dos anjos, para, num segundo momento, nos conduzir ao precipitado da introdução do limite inerente à subjetividade humana. Com argumento escrito em colaboração com o escritor austríaco Peter Handke, o filme passa-se em Berlim, numa cidade dividida pelo muro, com as marcas e cicatrizes da II Guerra Mundial. Dois anjos, Damiel e Cassiel, sobrevoam a cidade, contemplam os humanos, escutam os seus pensamentos e angústias. Os anjos veem, mas não são vistos (à exceção das crianças), e procuram confortar os mortais nas suas tristezas e angústias existenciais. Em diversos momentos, somos levados a mergulhar na cacofonia destas vozes interiores, dos pensamentos dos seres humanos. Os anjos são sensíveis ao desejo humano de imortalidade e plenitude, ao desejo do “sem limites” associado ao princípio do prazer e ao retorno à completude/plenitude do narcisismo primário.

Que condição é esta de “sem limite”?

Os anjos que sobrevoam a cidade veem o mundo a preto e branco, são imortais e confinados à vida espiritual. Estão suspensos numa existência contemplativa, intemporal, sem história, sem princípio nem fim. Damiel é atravessado pelo desejo e vai-se transformando em humano. Apaixona-se por Marion, artista de circo, ela própria itinerante, que vagueia entre lugares, e, ironia das ironias, trapezista! Damiel decide encarnar para viver o amor com Marion e, numa conversa com Cassiel, diz:

É ótimo ser espírito e testemunhar por toda a eternidade apenas o lado espiritual das pessoas. Mas, às vezes, canso-me dessa existência espiritual. Não quero pairar para sempre. Quero sentir um certo peso que ponha fim à falta de limite e me prenda ao chão. Eu gostaria de poder dizer “agora” a cada passo, cada rajada de vento. “Agora” e “agora” e não “para sempre” e “eternamente”. (…) Não vibrar apenas pelo espírito, mas por uma refeição, pelos contornos de uma nuca, de uma orelha. Mentir…deslavadamente. Sentir os ossos a moverem-se enquanto se caminha. Supor, em vez de saber sempre. Poder dizer “ah”, “oh”, “ei”, em vez de “sim” e “amém”.”

A condição de anjo faz-nos olhar para esta permanência intemporal como uma experiência entediante e vazia. Enquanto espectadores passivos, sobrevoam a Terra e a experiência humana de forma desligada, sem carne nem desejo. Poderíamos dizer que há uma loucura neste “sem limite”, neste sofrimento da eternidade vazia, do pensamento sem emoção, sem começo nem fim. A “dor” de Damiel remete para a insuportabilidade de não sentir, do desligamento e da vivência descarnada. Esta também é a “dor” que tantas vezes encontramos na clínica, na patologia do vazio, no retraimento narcísico e no evitamento da ligação afetiva. “Não me envolvo, não quero sofrer!”  ou “Este não é o momento certo para me ligar…” 

Damiel conversa com Cassiel sobre seu desejo de “cair”, de perder as asas e de sentir o mundo:

Sim, quero lutar pela minha própria história. O que aprendi olhando para baixo esse tempo todo, quero transformar num olhar profundo, num grito breve, num odor penetrante. Afinal, estive fora por tempo demais. Ausente o suficiente. Longe o suficiente do mundo. Quero entrar na história do mundo, ao menos para segurar uma maçã.

Finalmente, Damiel encarna e “sente o gosto da humanidade”, olha para o chão e vê as suas pegadas, sangra. No filme, a queda do anjo surge como um momento de corte simbolizado pela emergência cromática. Até aí a preto e branco, a imagem ganha cor. Esta passagem condensa a metamorfose do anjo em homem, o anjo que desejou transcender o “sem limite”, que troca a imortalidade pela articulação do desejo inerente à condição humana. Instaura-se a sensorialidade e as emoções inerentes à existência humana. Impõe-se o limite. As asas do anjo transformam-se em as asas do desejo, condição sine qua non para a emergência de um sujeito à procura da sua identidade. 

Retornamos ao início do filme e às questões ontológicas, do enigma da esfinge:

“Quando a criança era uma criança, era o momento das seguintes perguntas: por que sou eu e não tu? Por que estou aqui e não lá? Quando começou o tempo, e onde se acaba o espaço? A vida debaixo do sol é apenas um sonho? O que vejo, ouço e cheiro é só a aparência de um mundo anterior ao mundo? Existe realmente o mal e pessoas que são realmente más? Como pode ser que eu, que sou eu, antes de chegar a ser, não era? E que eu, que sou eu, algum dia já não serei mais o que sou”

Imagem do filme “As Asas do Desejo”, 1987

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