Fotografia: João Santana Lopes

As pessoas e as coisas pelas quais me apaixono são aquelas cuja ligação comigo se quebra lá pelo meio. Acho que pela vontade de remendar essa falha. Pela , que é um mistério; pelo mistério, que é um vazio. De mim ao que me é exterior, o que há são não-ligações; é nessa base que estabeleço relações, inclusive comigo, o não-ligado a mim mesmo. De facto, não sinto que esteja a viver comigo. Sinto-me, digamos, envenenado, alterado. Idealizo, outros praticam. Em ambas as posturas, por baixo, o desconhecimento. Ser prático: ser mais desenrascado por cima do desconhecimento. Quem pode jurar-se ligado? No máximo, ligado ao seu próprio desconhecimento. E se é isso que me apaixona, é porque me interessa cada vez menos o que já sei. Se um dia deixar de escrever, será por já saber o que iria colocar no papel. Nesse caso, não haverá qualquer ligação comigo à escrita, porque não haverá qualquer mistério entre mim e esta: qualquer não-ligação que eu, como um tonto, tente formar, no que sempre falhe. Daí, creio que é tudo falhado: levamos o mundo por cima de falhas, apartados. Falamos sempre ao lado do que seria uma fala do coração.

Também os gatos por isso; no fundo, todos os animais: desligados da humanidade. Não partilhamos do truque da linguagem, falsa ligação. E, no que toca a um gato, basta atentar-lhe nos olhos, quando mais se pensa estar unido, para logo nos derrotarmos ao achá-lo dentro de um qualquer mistério piramidal, distante do nosso. O que a natureza conserva de divino, e que a Arte vai buscar, talvez isso: uma ligação quebrada que constantemente tentamos refazer e que subsiste na sua falha, porque não se poderia não tentar, e não se poderia não falhar.

Desejo e ligação. Desejo de ligação, acho que é só isso. Porque justificarmo-nos noutra coisa seria ter uma razão, e razões é do que andamos à procura. Como se a vida fosse unir um fio que, no momento em que as duas pontas se encontram, se desfaz noutra parte. E sentarmo-nos em roda de uma mesa, com alguma confluência, está nesse preciso momento a desprender-nos de outras coisas. A necessidade que partilho, a de estar inteiro, tem talvez que ver com essa súbita consciência da minha impotência em estar ligado, em sequer disfarçar não o estar. Forçadamente desprendido das coisas, não as sinto reais, não me sinto real, não na sua vulgar definição. Porque o esforço de definir o que é real parece-me já um sonho, como nos custa reentrar em nós após um esforço extremamente físico. Respiro mais fundo e perco ainda mais o oxigénio. Falo e nem sequer me sinto ligado ao que estou a dizer, invento, trago outras palavras que me vão distanciando, ou nem distanciando; não há qualquer ponto de referência: a realidade seria a referência; notem como dizemos «isto é real, isto não é» para ganharmos uma posição relativamente a essas referências: o problema, a minha embriaguez, é que fomos nós a estipular essas referências, como se a meio de um sonho definíssemos neste o que é real, o que é claramente outro delírio, e mesmo a lucidez de o dizer, de reparar nisso… Sinto-me ainda menos sóbrio diante de pessoas perfeitamente encaixadas na personagem do momento, esmagado: como é possível que sejam tão elas próprias, tão justas? Simultaneamente, detecto a artificialidade: o falso que é ser verdadeiro. Daí, julgo que o actor mais próximo da verdade será aquele que admitir a dúvida na representação, e isso, parece-me, será meio caminho andado para que fuja aos clichês, como um som, como um verso que não temos a certeza de se é alegre: é qualquer coisa que nos revoluciona. Estou mais interessado nisso, porque para tal não será preciso saber nada, apenas perder-se em não saber, e por mais que neste mesmo texto eu diga «isto» é «aquilo», estou preparado para a seguir dizer algo que o não respeite. Precisamente, no sonho, tudo é possível, e tudo tem o seu sabor errado, porque aquilo, o sonho, não é a realidade, é uma ligação ténue, ao lado, talvez tocando-lhe, da verdadeira ligação. Ora, uma verdadeira ligação é que nunca tive. Apenas sonhos.

As pessoas mortas e as pessoas que matámos na nossa vida, na impossibilidade que demonstram de não se refazer. Na paralisação do seu último movimento, essa ligação subsiste com algum grão na engrenagem. No entanto, é uma ligação morta como aquelas metáforas cristalizadas na linguagem, o cadáver de uma ligação que o não foi quando chegou a ser. O que nos vai ficando lá para trás e que às vezes a memória puxa com uma corda tão fina, tão de seda que pelo caminho pode quebrar-se. Lançamos ligações para todo o lado; creio que nenhuma chega ao destino. Nenhuma nos atinge. Falta-nos electricidade. Escreve Bataille, e eu copio: «O que parece digno de ser amado é sempre o que nos transtorna, o inesperado, o inesperável. Como se a nossa essência estivesse por paradoxo ligada à nostalgia de alcançar o que tínhamos considerado impossível.» Coisas impossíveis é que me apaixonam. E neste momento, parecendo que não, achando eu próprio que não, descubro, afinal, que estou dolorosamente apaixonado: vejo tudo impossível, e é nesse mistério, nessa impossibilidade de ligação, que me perco e, perdido, me apaixono. Talvez estar apaixonado seja a única e por isso a mais pura e verdadeira forma de ligação; a possível diante do impossível, por agora. Do que tenho medo é de não me apaixonar: medo de saber, porque só me apaixono pelo que não sei. Felizmente, o desconhecido ultrapassa-nos sempre, ganha-nos sempre. Felizmente, nunca nos ligamos. Um buda, um iluminado, seria o ser mais infeliz que conceber se possa, como o seria Deus, pois já não teria nada a descobrir, não teria nada a que esticar os braços para se ligar: estaria absolutamente ligado; porém, por isso, absolutamente estéril, morto.

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