onze da noite, vinte e dois minutos e quarenta e quatro segundos – Emílio
E mais uma vez… repete-se, repete-se, repete-se… conheço cada momento, cada barulho, cada tormento… uma eternidade que se prolonga muito para lá do que seria suposto… sou o guardião da noite, noite que ninguém pediu para guardar. Pergunto-me: como é que, no mesmo tempo, vivo sempre mais horas do que qualquer outro? Vivo… morro… no alto do desespero…1,2 Subitamente, um estrondo retira-me do transe em que me encontrava. Espreito pela janela partida… lá em baixo, vejo a cadeira em que ainda agora me sentava, desfeita no chão. Confuso… volto-me para o quarto e encontro tudo revirado, papéis esvoaçam por todo o lado… pego numa folha manchada, rasgada, e tento recuperar o que, em tempos, lá escrevi:
«A MINHA ALMA é um caos, como é que pode ser? Há tudo em
mim: procura e descobrirás. Sou um fóssil que data do
início do mundo: nem todos os seus elementos se cristalizaram
completamente, e o caos inicial ainda se revela. Sou a
contradição absoluta, o clímax das antinomias, o último limite
da tensão; em mim tudo é possível, pois sou aquele que no
momento supremo, diante do nada absoluto, rirá.»2
duas da manhã, trinta minutos e sete segundos – Carlos
Começaram por ser apenas sussurros… de início, eu não compreendia de onde vinham. Talvez o vento. Fui prestando atenção, e tornaram-se cada vez mais nítidos. Nas noites sem dormir, era também assaltado por vívidas imagens de cenas terríveis. Um Mar de Sangue Espesso. Perdido, torcido, desesperado com o que se estava a passar, crescia em mim a certeza da loucura, afogado em histórias de personagens bizarras e incríveis. Os Espíritos Mortos. Comprei um caderno, vermelho. Queria desenhar, escrever, verter tudo o que me agitava no interior.3 Ainda me lembro da visão que me trouxe «três noites sem dormir e três dias de tormento»3:
«A Descida ao Inferno no Futuro
Na noite seguinte, o ar estava repleto de vozes. Uma voz alta
gritou: “estou a cair”. Outras gritaram confusas e
entusiasmadas: “Para onde? O que é que queres?” Devo
entregar-me a esta confusão? Estremeci. É uma profundidade
terrível. Queres que me entregue ao acaso, à loucura da minha
escuridão? Murchar? Murchar? Cais, e eu quero cair contigo,
sejas tu quem fores.
O espírito das profundezas abriu-me os olhos e eu vislumbrei as
coisas interiores, o mundo da minha alma, multiforme e
mutável.»4
cinco da manhã, vinte e três minutos e oitenta e dois segundos – Vicente
Há uma espécie de veneno suspenso no ar que preenche todo este espaço… absinto…? É de tal forma, que a palete de cheiros se torna insuportável… dedaleira…? Mas tenho de continuar… tenho de escapar antes que a escuridão me assalte5… mais café… Preciso de verde, vermelho, azul também… mais tabaco… É uma mistela inebriante… cânfora…? Há muito trabalho para fazer… mais cerveja… barro, raspo, espalho e ganha forma… mas parece que tudo está cada vez mais turvo… tropeço e caio no chão… ali, estendido, fecho os olhos e apago por momentos… O que uso para me curar mata-me, lentamente. Mas não é essa a forma mais rápida de chegar às estrelas? Porque a pé levaria uma eternidade…6 Espero que a carta lhe chegue depressa, pois apenas ele me poderá compreender, apenas ele me poderá ajudar:
«Nos últimos quinze dias, tenho andado bastante fraco e não me
tenho sentido bem. Não queria ceder a isso e continuei a
trabalhar. Mas não consegui dormir durante várias noites
seguidas, estive febril e nervoso. No entanto, obrigo-me a
continuar e a manter-me ocupado, pois não é altura para
adoecer […].»7
oito da manhã, vinte e cinto minutos e dezanove segundos – Frederico
Estendo o braço para desligar o despertador, momentos antes de este tocar. Sinto-me exausto, imerso em confusão. Levanto-me, sem saber bem o que aconteceu. Tudo lateja, tudo dói… a escudilha, que conserva os meus interiores, entornada no chão… um cheiro nauseabundo… Penso na decadência… torna-se no centro da minha existência. Ainda assim, percorro as rotinas habituais e preparo-me para sair. Enquanto desço a montanha, a caminho da sessão, sem saber porquê recordo as palavras de um velho sábio:
«O sono atinge os meus olhos, que se tornam pesados. O sono
aflora-me os lábios: ficam entreabertos.
Na verdade, aparece com passos de veludo, o mais suave
ladrão, e rouba-me os pensamentos: fico embrutecido, tanto
como esta própria cátedra.
Mas não lhe resistirei por muito tempo: eis que já estou
deitado.»8
Chego, inquieto, ao meu destino. Toco, entro e inspecciono tudo à minha volta. Nada de novo. Deito-me e durante longos minutos prevalece um profundo silêncio… Inesperadamente, palavras inaudíveis fogem-me da boca: não vai acreditar no que se passou esta noite… um campo de papoilas… um mar de sangue… um terrível medo de nunca mais acordar… tudo acabou com um estrondo…
mais tarde… (mas mesmo muito, muito mais tarde…) – Carlos
Estou sentado à beira do lago, perdido nas reminiscências de uma outra vida… outras vidas… «O tempo é uma criança…»9 Os olhos repousam no horizonte, no recorte das montanhas que se elevam no céu.«… a terra dos sonhos»9. Foi uma longa e rica viagem pelo meio da multidão. «Eu sou um órfão, sozinho…»9Aproxima-se uma tempestade… o pesadelo de Frederico retumba, uma última vez, no meu pensamento… Pouso o copo e pego no velho caderno:
Na escuridão de uma noite branca, (a mente) o ser humano
converge no desespero do infinito. À mercê da (d)Destruidora
do sono e do sonho, (irrompe) dissolve-se no reino da loucura.
(Trucidado às mãos) Nessa tortura interna, privado de um
alívio momentâneo do peso da vida, resiste como pode e (se
tiver sorte) cria o que não (consegue) lhe é possível sonhar
Mas, antes de premer o ponto final, a caneta cai e, com ela, cai também Carlos, no profundo e derradeiro descanso…
P.S. É possível, todavia improvável, que este conto tenha sido escrito numa madrugada, mas é certo que as duras realidades de Emil, Carl, Vincent e Friedrich confluíram, aqui, nas fantasias de outrem.
Referências:
1. Regier, W. G. (2004). Cioran’s Insomnia. Comparative Literature Issue, 119(5), 994–1012.
2. Ciorian, E. M. (1992). On the Heights of Despair. The University of Chicago Press.
3. Mahr, G. & Drake, C. L. (2022). Singing in tune: Carl Jung and The Red Book. Sleep Health: Journal of the National Sleep Foundation, 8, 347–349.
4. Jung, C. G. (2009) The Red Book: Liber Novus. S. Shamdasani (Ed.). Norton.
5. Kryger, M. H. (2023). Vincent van Gogh’s sleep. Sleep Health: Journal of the National Sleep Foundation, 9, 567–570.
6. Carta enviada a Theo van Gogh em 9 ou 10 de julho de 1888. https://vangoghletters.org/vg/letters/let638/letter.html
7. Carta enviada a Theo van Gogh em 23 de maio de 1882. https://vangoghletters.org/vg/letters/let230/letter.html
8. Nietzsche, F. (2000). Assim Falava Zaratustra. Guimarães Editores.
9. Jung, C. G. (2019). Memórias, Sonhos, Reflexões. Relógio D’Água.
Fotografia: Jorge Rolão Aguiar