O céu dentro da palma da minha mão fechada

Se quando olho para cima, o que vejo não é o que aprendi que devia ver, a minha inadequação é só ótica? Ou posso presumir que também é um bocado filosófica? Se quando olho de frente para o céu, sem medo de me estatelar nele, vejo ali um mapa para encontrar a verdade, uma verdade daquele tipo que se esconde nos esforços constantes em ultrapassar o conhecido, devo ficar calado? Se eu, quando torço o pescoço, fazendo a testa arranhar o céu e deixando a nuca cair sobre as minhas costas, percebo, num ápice, que só sou fiel à dúvida fecunda, devo passar os dias a ruminar conspirações calado para não haver chatices?

Fecho os olhos e o que me vem à memória é isto: Bruno, Afonso e Cabet estão sentados à volta de uma fogueira. O calor do fogo torna-os mais introspetivos, parece-me, hoje. A Cabet parece, por vezes, que tudo o que dizem e fazem se reduz a uma série infinita de trivialidades. Bruno contrapõe: não. Tudo tem o seu valor. As pequenas coisas também têm o seu valor. É nas pequenas coisas que se esconde o essencial. Cabet acaba por concordar, reconhecendo, no entanto, que são muitas vezes essas coisas simples – onde se dorme, o que se come – que mais pesam na vida. As banalidades. Afonso completa o raciocínio, acrescentando que o modo como se partilham essas experiências – com quem se dorme, quando se come – também importam. Claro.

Afonso intervém. Para Afonso as coisas são sempre mais estruturais: quem fica com o fruto do trabalho de cada um, pergunta ele. E depois reformula: para quem, afinal, todos trabalham, pergunta ele. Cabet responde, como hábito, com um dilema: ou se acaba com tudo e se recomeça do zero, ou se avança por dentro do sistema, tentando mudá-lo aos poucos. Devagarinho. Afonso acena com a ideia de uma mudança “progressiva”. Não. A Cabet esta ideia parece um erro. Para ele, o problema de base é, muito claramente, a divisão em classes. Afonso tenta alargar a reflexão, mencionando outras divisões – do território, do tempo –, mas Cabet insiste: a questão fundamental continua a ser a divisão de classes. Ele observa que é possível imaginar mundos fantásticos, utópicos, quase mágicos – mas que, independentemente disso, tudo converge para essa questão central: luta de classes. Afonso reflete que, mesmo naquele novo espaço onde agora habitam, acabam por reproduzir as mesmas injustiças do Velho Mundo. Cabet vai mais longe: algumas injustiças ali, no “Novo” Mundo, chegam a ser piores. Aquilo é uma selva, afirma ele, onde só há animais. Não há nem um anjo. Só animais. Afonso descreve aquele lugar como o quintal do capital. Mesmo sem ter graça, os outros riem.

Bruno adverte: olhar o mundo de frente, por vezes, torna impossível compreendê-lo com clareza. Cabet sugere então que é preferível olhá-lo através das ideias, como se estas fossem um filtro necessário. Nem mais. Bruno concorda. Encarar a realidade de frente exige ação, compromisso, transformação – e nem sempre há força para isso. Hoje, por exemplo, não há. Afonso admite que, nesses momentos, é preferível evitar uma postura “científica” e manter algum distanciamento. Ele defende que a questão não está em aplicar modelos utópicos como meros exercícios teóricos, mas em colaborar conscientemente no processo de transformação da sociedade. Cabet alerta: caso contrário, tudo se reduz a especulação. Afonso reforça: não se trata de estar fora do tempo, mas de corresponder às exigências da época. Bruno, por seu lado, questiona se as exigências do tempo não estarão, elas próprias, erradas – e se o jogo, afinal, não está viciado desde o início, condenando à infelicidade mesmo os mais justos. Cabet devolve-lhe a escolha: ou abrimos caminho à revolução, ou nos tornamos um obstáculo ao seu percurso. Simples.

Afonso defende que a utopia de hoje pode ser a verdade de amanhã. A utopia de hoje é a verdade de amanhã. Cabet lembra que o desenvolvimento individual deve acompanhar o coletivo. Afonso recusa a ideia de que algo é utópico só por ainda não ter sido tentado. Cabet repete: ou se é caminho, ou se é pedra no caminho da revolução. Afonso, já um bocado exaltado, evoca os desejos. O desejo. Para ele, os desejos, o desejo, os desejos são tão importantes quanto as ideias. Sem fantasia, nada existe. Afonso olha à sua volta e recusa-se a aceitar que o mundo se resuma a um cenário árido. Não pode ser. Vê coisas que ainda não aconteceram – e vive para elas, para que possam vir a existir. Cabet, trocista, quer saber se, nessas visões, ele vê justiça. 

Fotografia: João Santana Lopes

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