Antes de ser, há o sonho. Ainda não somos, mas já nos sonham, atribuem um nome, um lugar numa cadeia de símbolos, onde se forjam esperanças, dores, medos, heranças e um futuro por se revelar. Ainda mal somos quando atravessamos a primeira porta. Do outro lado do parto, espera-nos o mundo, que nos habitará e alimentará e será por nós transformado, em movimentos de acesso e recusa, (entre)abrir e fechar, demorar na orla, ousar forçar entrada, sair com estrondo, ou de soslaio, espreitar pela fechadura, ficar de fora, esquecer a chave, tomar o batente para anunciar a nossa presença, partir de novo, sem destino, descobrir outras portas, ser deixado ao relento, pedir abrigo, esconder ou transbordar.

Nisto, formam-se as palavras, que são como portas de acesso, nos separam dos outros e nos abrem ao desejo de os alcançar. Há instantes em suspenso, feitos de perplexidade, de fluxo e de transição. As palavras dormem umas nas outras e brincam entre si; mudam de posição, trocam de pele, giram como letras em constelações oníricas. 

A psicanálise revisita o interior, estabelecendo um antes e um depois, desbravando um entre, projetando o exterior. Nestas intermitências do ser e do devir, as portas são giratórias, reinventam-se e convidam horizontes de luz e sombra a tecer céu e chão, mar e brisa, em infinitas combinações. A porta é o primeiro gesto: o limiar entre o dentro e o fora, o conhecido e o porvir. A fronteira faz-se entre o público, o privado e o secreto, acolhendo e delimitando partes de nós. Em cada análise há uma porta — física, simbólica, temporal. Entrar é um ato de confiança, uma vertigem na escuridão, quase um salto de fé. Mas nenhuma porta se abre sem que, em simultâneo, outras se fechem. O sujeito que entra já não é o mesmo que bateu à porta de alguém; algo ficou do lado de fora, algo novo começou a formar-se do lado de dentro, e os vestígios de um no outro perduram.

À entrada, está a tropa: das defesas, das certezas, dos hábitos, das narrativas consolidadas. O recalcamento mantém o inconsciente à distância, controlando a angústia que emana de desejos e de memórias não assimiladas. Recalcar é manter a porta fechada, mas sem neutralizar a força que se desvela do outro lado. A angústia permanece, pulsante, subtil ou insistente, recordando que nada está completamente fechado.

A tropa joga-se no compromisso: defende, mas também resiste, passa revista ou impede. Guardiã do eu, que marcha em silêncio, uniformizada na tarefa de proteger o território psíquico, sem ela, arrisca-se o desamparo absoluto; com ela, interroga-se o medo de nunca vir a atravessar o limiar. Há que distorcer, interrogar, reinventar. Não há regra sem exceção; não há caminho sem transgressão. Sem erro, não há ensaio nem descoberta. Na análise, para ser livre, a palavra precisa rir e aprender a desertar.

Quando a tropa hesita e a porta se entreabre, surge o parto. O parto não é apenas o nascimento biológico, mas o gesto repetido de tornar-se, num desdobramento do ser em direção a si mesmo, pela via da alteridade. Cada sessão é um parto: algo de novo se diz, algo se desprende, algo respira pela primeira vez. Nesse nascimento sempre doloroso, somos trespassados por terrores, resistências, lapsos, mitos, silêncios, lágrimas. Para acolher e tentar nomear o que emerge, rasgar e suturar ao mesmo tempo. Nascer é ferir o silêncio em que a palavra é cicatriz.

E afinal, todo o parto é também um rapto. O que nasce é arrancado de um lugar de pertença arcaico. O sujeito é resgatado da sua ilusão de unidade, levado a um espaço de dispersão onde as palavras ainda não sabem o caminho de volta. Nesse sentido, atravessar uma porta é também enfrentar o rapto do inconsciente: ser levado pelo incognoscível, pela memória que surge sem aviso, pelo desejo que se denuncia. Fragmentos de riso, choro e surpresa, em partes iguais, à procura de nascer.

O rapto é o avesso do parto — o gesto violento e necessário que nos separa da matriz que nos dá vida, mas também nos aprisiona, transformando o conforto da fusão em perda criadora. Na clínica, o rapto ocorre quando o sujeito é apanhado de surpresa por uma verdade sua, talvez trazida pela boca do outro, depois de ter sido sonhada, temida, ousada. São estes os instantes em que a escuta despoja e em que o sujeito se torna nu diante do próprio enigma.

Porta, tropa, parto, rapto: anagramas formando, em círculo, um alfabeto de passagem, por onde a mente respira: abrir, nascer, perder… reabrir, renascer, transformar.

O analista, oráculo do intervalo, não força a porta nem dispersa a tropa. Apenas sustenta o limiar, o espaço onde o parto e o rapto se (con)fundem. A análise é o exercício de permanecer nesse entre — onde as palavras ainda estão a aprender o seu próprio corpo.

Talvez o inconsciente fale precisamente assim: por anagramas, por deslocamentos, ecos que se repetem e ressoam no interior do analista, que lhes devolve novos sentidos, sem se igualarem.
Cada rearranjo é uma forma de atrever-se a ser “o outro”. E, no fim, talvez seja essa a chave da porta que dá acesso ao que nos habita e nos devolve passagem para o que nos acrescenta..

Fotografia: Jorge Rolão Aguiar

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